Em maio do ano de dois
mil e três, o Congresso Nacional aprovou por meio de decreto legislativo o
texto da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional,
adotada em Nova York, em 15 de novembro de 2000, oportunizando, assim, ao
Presidente da República, através do Decreto n. 5015, de 12 de março de 2004,
determinar em seu artigo primeiro a execução e cumprimento do texto legal
daquele diploma que passou, a partir da sua publicação, a integrar a ordem
jurídica interna.
Referido diploma elege
uma série de instrumentos legais objetivando o combate ao crime organizado
transnacional, como também conceitua a conduta que caracteriza crime
organizado, levando o Conselho Nacional de Justiça ao entendimento de que
estando o crime organizado tipificado legalmente em nosso ordenamento
normativo, impusera-se a criação de varas especializadas para o seu julgamento,
conforme Recomendação n.03, de 30 de maio de 2006.
O tema, no entanto,
merece reflexão no âmbito do atual Estado de Direito Constitucional, enfocando-se
os direitos e garantias individuais da pessoa humana ao longo de sua histórica
trajetória, bem como a feição assumida pelo moderno Direto Penal que pretende
ser garantista, indagando-se, num primeiro momento, se um Decreto presidencial,
embasado em um Decreto Legislativo, pode criminalizar condutas, e ao mesmo
tempo guardar harmonia com o principio constitucional da reserva legal que,
dentre outros, informa o hodierno Estado de Direito Constitucional.
O Estado Democrático de
Direito ideologicamente foi construído ao longo de árdua caminhada evolutiva,
apresentando-se, inicialmente, num modelo absolutista, por centralizar o poder
na figura do monarca, a quem cabiam todas as decisões relativas aos assuntos
públicos.Neste período, o Estado, apesar de criador da ordem jurídica, a ela
não se submetia.O poder, exercido de forma arbitrária, acabou sucumbindo ante
as idéias reacionárias e filosóficas que permearam o Século das Luzes, dando
lugar ao surgimento do Estado Liberal, que tinha como pressuposto não mais a
sujeição do cidadão ao arbítrio e aos interesses do monarca, mas ao governo das
leis provenientes da soberania popular.
O Estado de Direito
Liberal, Positivista ou Legal, marca o inicio de sua trajetória com o movimento
iluminista, com a derrocada do absolutismo, com a revolução francesa e
estadunidense, culminando com a limitação do poder político do Estado pelo
Direito, por meio de garantias individuais e pelas liberdades de expressão e
associação.
Todavia, o formalismo que permeou as idéias de Kelsen, não comportando qualquer
discussão em torno do conteúdo da lei, que sempre deveria prevalecer ,por
resultar da vontade geral,delineou o poder judiciário como um órgão legalista,
cuja concepção acerca da validade da lei estava condicionada a sua vigência.
Lei válida era lei vigente , devendo ser sempre aplicada ao caso concreto, em
nada importando se o seu conteúdo divorciava-se das garantias apregoadas no
texto constitucional.
Sem êxito para se
sustentar, o Estado Liberal cede espaço para a construção de uma nova concepção
, fundada nos princípios da dignidade da pessoa humana.
O Estado Constitucional de Direito substitui o modelo anterior, acrescentando
às conquistas até então adquiridas a eleição da Carta Magna e do Direito
Internacional de Direitos Humanos(parágrafo 3º, art.5º ,CF),como referencial de
validade para as leis infraconstitucionais. Tem como característica fundamental
a supremacia da constituição, os direitos fundamentais ,a
consagração do princípio da legalidade e a funcionalização de todos os poderes
do Estado para garantir exercício desses direitos fundamentais incorporados na
Carta Magna.
Destaca-se, ainda,
outra marcante característica do Estado de Direito Constitucional consolidada
na relevância do direito internacional de direitos humanos na ordem interna,
ocupando posição hierárquica de destaque.
Sobre o tema, interessante decisão foi proferida pelo Supremo Tribunal Federal,
no final do ano passado, no HC 90.450/MG, onde as disposições contida no
Tratado Internacional de Direitos Humanos, Pacto de São José da Costa Rica,
prevaleceu sobre norma constitucional. Na oportunidade, assinalou o Ministro
Celso de Mello, que o judiciário deve aplicar ao caso concreto a norma que
melhor prestigie a dignidade da pessoa humana.
A questão da vigência e
validade de uma norma não mais se discute pelo foco da horizontalidade ou
temporalidade de outra que lhe seja superior ou mais antiga, mas se manifesta
quando formalmente e materialmente guardar harmonia com a Constituição Federal
e com o Direito Internacional de Direitos Humanos.
Neste contexto, o Poder
Judiciário assume papel relevante , cabendo-lhe a tarefa de fazer valer os
princípios constitucionais, sobretudo fazer valer as garantia e os direitos
fundamentais conquistados no Estado Liberal. Abandona a postura legalista de
mero aplicador da lei, para ocupar posição de vanguarda ao interpretar a lei
diante da Constituição e dos Tratados e Convenções de Direitos Humanos
,incorporados a ordem interna, antes de aplicá-la. A lei ordinária não mais
impera absoluta porque tenha adquirido vigência, é indispensável que tenha
validade, e este processo interpretativo agora é atribuído ao judiciário, órgão
encarregado de zelar pelas garantias constitucionais conquistadas.
Na solução dos
conflitos aplica-se a lei que mais se adequa a solução do caso concreto,
sobretudo quando a questão envolve direitos e garantias fundamentais. Foi assim
que o Supremo Tribunal Federal garantiu a liberdade do depositário infiel,
mesmo havendo disposição constitucional em sentido contrário. Ao aplicar as
disposições do Direito Internacional, não se derrogou disposição constitucional,
mas se prestigiou a dignidade da pessoa humana.
Por outro lado, a mesma
solução não se verifica quando a internacionalização se refere a Tratados e
Convenções em matéria penal, conforme acentua a melhor doutrina.
As normas penais incriminadoras que criam ou ampliam o jus puniendi devem ser
originadas na lei, por decorrência do principio da reserva legal, um dos
princípios resultantes das conquistas individuais que derrogou o Estado
Absolutista, impondo a prévia existência de lei formal para a punição de crimes.
Esta formalidade a que se refere o principio da Reserva Legal, é aquela que
decorre da expressão da soberania popular.
Os Tratados e
Convenções Internacionais, por força do disposto no artigo 84, VIII, são
celebrados pelo Presidente da Republica, e embora tenham que obter aprovação
pelo Legislativo, não podem ser por este alterados, menos ainda sofrer emendas,
limitando-se o legislativo a aprovar ou não o texto do Tratado Internacional,
via Decreto Legislativo.
O Congresso Nacional,
no exercício da soberania popular, não pode alterar o conteúdo do que foi
unilateralmente pactuado pelo Chefe do Executivo.
Portanto, não se pode dar aos Tratados e Convenções Internacionais de Direito
Penal o mesmo tratamento dispensado aos Tratados e Convenções de Direitos
Humanos, pois estes ampliam direitos e garantias, enquanto que aqueles
cerceiam, restringem direitos e garantias, sobretudo o direito a liberdade.Dai
porque, somente a espécie normativa resultante da vontade popular representada
pelo Poder Legislativo, pode criminalizar condutas ou restringir direitos e
garantias.
“Como dizia o Marquês
de Beccaria,Cesare Bonessana, só uma norma procedente do poder legislativo, que
representa toda uma sociedade unida pelo contrato social, pode limitar a
sagrada liberdade do individuo, definindo os delitos e estabelecendo penas.” (
GOMES, Luiz Flavio,2008, pag.41.)
Ademais, importa
reconhecer não existir, até então no Brasil, legislação penal incriminadora que
tenha definido e tipificado conduta que caracterize crime organizado.
Em pleno vigor a Lei 9.034/95 que, alterada pela Lei 10.217/01, não define o
tipo penal de crime organizado, estando em pauta acirrada discussão doutrinária
e política, referente ao conceito de organização criminosa.
Todavia, com a inclusão
da Convenção de Palermo no ordenamento jurídico brasileiro, trazendo o conceito
de organização criminosa, alguns setores da doutrina passaram a entender por
encerrada a discussão em torno do tema, tendo a Convenção condições de ser
aplicada de imediato.
O Supremo Tribunal
Federal, em julgamento do HABEAS CORPUS Nº 77.771 - SP (2007/0041879-9),
acolheu a conceituação de organização criminosa definida pela Convenção de
Palermo, e sustentou que referido diploma legal tem aplicabilidade imediata no
âmbito normativo interno.
No entanto, o artigo 22
da Constituição Federal expressamente determina que somente a União pode
legislar sobre Direito penal .Somente o Estado,através do poder legislativo,
detentor do direito de punir, é o único titular da criação e ampliação do jus
puniendi, cabendo-lhe exclusivamente a criação de normas penais que incriminam
condutas.
Ademais, “em matéria
penal que incrimina condutas, o princípio da reserva legal adquire dimensão de
destaque. Inserido no inciso XXXIX, do artigo 5º da Constituição Federal, exige
que a conduta , para ser crime, deve subsumir-se ao tipo legal definido por
lei. Mas ainda há que se perguntar: que lei? A resposta é : a lei formal, a lei
produzida pelo Congresso Nacional segundo o procedimento constitucionalmente
estabelecido Pois cabe a União legislar sobre a matéria( art. 22,I ). Não se
admite a definição de infração penal nem por decreto,nem por lei delegada e,
conseqüentemente, nem por medida provisória.”( SILVA, Jose Afonso, 2009,
pag.138).
Ainda, colhe-se da
doutrina de Rogério Greco:-
“Um direito Penal que procura estar inserido sob uma ótica garantista deve
obrigatoriamente discernir os critérios de legalidade formal e material, sendo
ambos indispensáveis à aplicação da lei penal .Por legalidade formal entende-se
a obediência aos tramites procedimentais previstos pela Constituição para que
determinado diploma legal possa vir a fazer parte de nosso ordenamento
jurídico. Contudo , em um Estado Constitucional de Direito , no qual se
pretende adotar um modelo penal garantista, além da legalidade formal deve
haver, também, aquela de cunho material. Devem ser obedecidas não só as formas
e procedimentos impostos pela Constituição , mas também,e principalmente, o seu
conteúdo, respeitando-se suas proibições e imposições para a garantia de nossos
direitos fundamentais por ela previstos” (GRECO, Rogério, 2008, pag. 98,99).
Atualmente não se pode
deixar de considerar que o modelo de direito penal no Brasil se pauta pelos
princípios limitadores do poder punitivo do Estado, previstos na Constituição
Federal, deixando de ser legitima a intervenção Estatal no direito a liberdade
do cidadão quando se apresentar criminalizando condutas por vias opostas a
legalidade formal e material.
O ordenamento jurídico
penal ainda não apresenta lei vigente e válida que conceitue crime organizado,
ante a ausência da descrição típica da referida conduta proibida. A Convenção
de Palermo , além de ser espécie normativa desprovida de legalidade formal, não
se prestando a criminalização de condutas na ordem interna, conceitua o que vem
a ser crime organizado transnacional, não preenchendo o vácuo existente pela
falta de conceituação legal de crime organizado sem os contornos da
transnacionalidade. Ademais, é principio basilar do Estado Constitucional a vedação
do emprego de analogia ou qualquer outro recurso para a criminalização de
condutas.
2.
Conclusão
O atual Estado de Direito Constitucional sustenta-se em vários pilares, dentre
os quais está o principio da legalidade( formal e material), sobretudo em matéria
penal, pois a subordinação de todos a lei é a única forma de se evitar a
intervenção arbitraria do Estado nos direitos e garantias dos cidadãos.
A Resolução do Conselho
Nacional de Justiça que determina a criação de varas especializadas para o
julgamento de crimes que sequer encontram tipificação no direito penal e o
posicionamento do Supremo Tribunal Federal, admitindo a conceituação de
organização criminosa adotado pela Convenção de Palermo, instrumento legal que,
embora integrado a ordem interna, não se submeteu ao devido processo
constitucional para sua formalização, parecem se distanciar do modelo
garantista e constitucional do atual Estado de Direito.
Em matéria penal é
preciso refletir se uma postura pró-ativa do judiciário comprometeria seu perfil
moderno de escudeiro dos direitos fundamentais do cidadão, arduamente
conquistados ao longo do processo evolutivo do Estado de Direito, pois qualquer
restrição ao direito a liberdade sem a observância da legalidade formal e
material, aumentando o poder punitivo do Estado, poderia ensejar um retrocesso
ao antigo e derrocado modelo de Estado Absolutista, com a diferença do poder se
concentrar não mais nas mãos de um soberano, mas sob a autoridade daquele órgão
que deve, sob a égide de uma constituição cidadã e garantista , ser o fiel
guardião das garantias conquistadas, sobretudo ao aplicar o Direito e promover
a Justiça.
3. Referências Bibliográficas
ACKERMAN,Bruce.A Nova Separação dos
Poderes.Rio de Janeiro:Lumen Juris,2009. p.07-22.
GOMES, Luiz Flavio.Estado Constitucional de Direito e a Nova Pirâmide Jurídica.
1º ed.São Paulo:Ed. Premier,2008 pag.41-66.
GRECO,Rogério. Curso de Direito
Penal,Parte Geral.10º ed. .Rio de Janeiro:Ed. Impetus,2008,pag. 98-100.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o
Direito Constitucional Internacional. 1Oº ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2009,
pag. 25 -28.
REZEK, Francisco. Direito Internacional
Público: curso elementar. 11 º ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008, pag. 102-110.
SILVA, Jose Afonso. Comentários
Contextual À Constituição. 6º ed. São Paulo: Ed. Malheiros Editores, 2009,
pag.138-140