sexta-feira, 7 de agosto de 2009

PRISÃO POR FURTO DE UMA CEBOLA


LUIZ FLÁVIO GOMES
Doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri e Diretor-Presidente do Centro de Estudos Criminais-Cursos ao vivo e pela Internet (www.estudoscriminais.com.br). E-mail: falecom@luizflaviogomes.com.br

A revista ISTOÉ n. 1702, de 15.05.02, p. 44 (Madi Rodrigues) noticiou: Izabel tem 38 anos. É empregada doméstica. Subtraiu do seu patrão uma cebola, uma cabeça de alho e um tablete de caldo de carne. Total da subtração: R$ 4,00. O delegado de polícia (Márcio Barros de Campos) lavrou a prisão em flagrante e disse: “Ela vai responder por furto sim. O flagrante está perfeito”.
O que é insignificante não deve ser resolvido pelo Direito penal. O furto de uma cebola e uma cabeça de alho só é formalmente típico, não, porém, materialmente. Está, portanto, fora do Direito penal. Deve ser solucionado com o direito trabalhista, civil etc., jamais com o instrumento mais terrível com que conta o sistema de controle social.
A prisão em flagrante de Izabel é fruto de um equívoco. Demonstra de outro lado que o ensino jurídico no nosso país (e particularmente o ensino do Direito penal) precisa avançar. O homem já chegou à lua, o mundo se globalizou, a planeta se integrou inteiramente pela Internet e nosso Direito penal continua o mesmo da Segunda Guerra mundial. O delegado agiu da forma como agiu porque aprendeu na faculdade ser um legalista positivista e napoleônico convicto. Esse modelo de ensino jurídico (e de Direito penal) já morreu.
Mas se já morreu, porque o delegado continua lavrando flagrante no caso do furto de uma cebola? A resposta é simples: morreu mas ainda não foi sepultado! O modelo clássico e provecto de Direito penal é como elefante: dar tiros nele é fácil, difícil será sepultar o cadáver.
O delegado, o juiz e o promotor que seguem o velho e ultrapassado modelo de Direito penal (formalista, legalista), no máximo aprenderam o Direito penal do finalismo (que começou a ficar decadente na Europa na década de 60 exatamente por ser puramente formalista). Apesar disso, ainda é o modelo contemplado (em geral) nos manuais brasileiros e é o ensinado nas faculdades de direito.
Nosso ensino jurídico (no âmbito penal) está atrasado em mais de três décadas. Depois do finalismo de Welzel três novas etapas de evolução no delito já ocorreram: (a) a teoria racional-final de Roxin; (b) a teoria funcionalista sistêmica de Jakobs; (c) teoria constitucionalista do delito (de tudo isso estou cuidando no meu curso de Direito penal pela Internet assim como no curso ao vivo sobre teoria do delito, que será ministrado em São Paulo no segundo semestre de 2002 – cf. www.estudoscriminais.com.br).
No que se relaciona com a admissibilidade do princípio da insignificância no Direito penal já não há o que se discutir. Dos fatos mínimos (dos delitos de bagatela) não deve cuidar o juiz (minina non curat praetor). Esse importante princípio, já aplicado no tempo do direito romano e recuperado depois da segunda guerra por Roxin (Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, em JUS, 1964, p. 373 e ss.), vem sendo reconhecido amplamente pelos juízes e tribunais, especialmente nos delitos de descaminho, furto etc.
Consequências práticas: ninguém pode ser preso em flagrante por fato absolutamente insignificante (por ser atípico). Ninguém pode ser processado por isso. O correto, portanto, em razão da atipicidade penal do fato, é arquivar o caso logo no princípio. O delegado faz um simples boletim de ocorrência e o promotor pede o arquivamento. E se o promotor denunciar ? Cabe ao juiz rejeitar a denúncia, com base no art. 43, I, do CPP (“a denúncia ou queixa será rejeitada quando o fato narrado evidentemente não constituir crime”).
Tipo legal não é a mesma coisa que tipo penal. Subsunção formal não é adequação típica material. O Direito penal já não se coaduna com a dogmática formalista do século XX. Por força do princípio da intervenção mínima nem toda ofensa ao bem jurídico merece sanção penal. Os critérios de política criminal (intervenção mínima, por exemplo) fazem parte do Direito penal (Roxin). Esse é o novo Direito penal, que se mostra antagônico frente ao Direito penal formalista e literalista do século passado.
Duas são as hipóteses de insignificância no Direito penal: (a) insignificância da conduta; (b) insignificância do resultado.
No delito de arremesso de projétil (CP, art. 264: “Arremessar projétil contra veículo, em movimento, destinado ao transporte público por terra, por água ou pelo ar: pena – detenção de 1 a 6 meses”), quem arremessa contra um ônibus em movimento um bolinha de papel pratica uma conduta absolutamente insignificante; no delito de inundação (CP, art. 254: “Causar inundação, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem: pena – reclusão de 3 a 6 anos, no caso de dolo, ou detenção de 6 meses a 2 anos, no caso de culpa”), quem joga um copo d´água numa represa de 10 milhões de litros de água pratica uma conduta absolutamente insignificante.
Nessas hipóteses, o risco criado (absolutamente insignificante) não pode ser imputado à conduta (teoria da imputação objetiva em conjugação com o princípio da insignificância). Estamos diante de fatos atípicos.
No delito de furto (CP, art. 155), quem subtrai uma cebola e uma cabeça de alho, que totaliza R$ 4,00, pratica uma conduta relevante (há desvalor da ação) mas o resultado jurídico (a lesão) é absolutamente insignificante (não há desvalor do resultado). Também nessa hipótese o fato é atípico. Não há incidência do Direito penal.
Mas ficaria impune o autor do fato insignificante? Não. Deve recair sobre ele todas as sanções civis (indenização), trabalhistas (despedida do empregado, quando o caso) etc. O que não se justifica é a aplicação do Direito penal. Não devemos utilizar o canhão para matar um passarinho!


Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em 25.06.2002

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Lei Maria de Penha também se aplica para namorados


O namoro evidencia uma relação íntima de afeto independente de morar com a namorada. Portanto, agressões e ameaças – mesmo que o relacionamento tenha terminado – que ocorram por causa do namoro caracterizam violência doméstica. O entendimento é do ministro Jorge Mussi, do Superior Tribunal de Justiça, fundamentando-se na Lei Maria da Penha.
Para definir o caso, o ministrou julgou o conflito negativo de competência (quando uma vara cível atribui a outra a responsabilidade de fazer o julgamento) entre dois juízos de Direito mineiros. Segundo os autos, o denunciado ameaçou sua ex-namorada e o atual namorado dela.
Ao decidir, o ministro Jorge Mussi ressaltou que de fato existiu um relacionamento entre réu e vítima durante 24 anos, não tendo o acusado aparentemente se conformado com o rompimento da relação, passando a ameaçar a ex-namorada. Assim, caracteriza-se o nexo causal entre a conduta agressiva do ex-namorado e a relação de intimidade que havia entre ambos.
O ministro destacou que a hipótese em questão se amolda à Lei Maria da Penha, uma vez que está caracterizada a relação íntima de afeto entre as partes, ainda que apenas como namorados, pois o dispositivo legal não exige coabitação para configuração da violência doméstica contra a mulher. O relator conheceu do conflito e declarou a competência do juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete (MG) para processar e julgar a ação.
O juízo da 1ª Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete (MG), então processante do caso, havia declinado da competência, alegando que os fatos não ocorreram no âmbito familiar e doméstico, pois o relacionamento das partes já tinha acabado, não se enquadrando, assim, na Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha).
O juízo do Juizado Especial Criminal de Conselheiro Lafaiete, por sua vez, sustentou que os fatos narrados nos autos decorreram da relação de namoro entre réu e vítima. Afirmou, ainda, que a Lei Maria da Penha tem efetiva aplicação nos casos de relacionamentos amorosos já encerrados, uma vez que a lei não exige coabitação. Diante disso, entrou com conflito de competência no STJ, solicitando reconhecimento da competência do juízo da Direito da 1ª Vara Criminal para o processamento da ação. Com informações da Assessoria de Imprensa do Superior Tribual de Justiça.CC 103.813.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Nova lei determina que recusa em fazer teste de DNA presume paternidade


Publicado no blog em 04/08/2009

Foi sancionada na última semana, Lei nº. 12.004, que regula a investigação de paternidade de filhos fora do casamento. A nova lei, aprovada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, determina que quando o suposto pai se recusar a submeter-se ao exame de DNA, será reconhecida a presunção de paternidade.
A Lei agora aprovada vai de encontro com parecer que já havia sido adotado pelo STJ na Súmula 301, publicada em 2004. Esta começou a ser construída em 1998, quando o Superior julgava processo de reconhecimento de paternidade (REsp 135361). Na ocasião foi aplicado o entendimento de que, em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade.
Naquele julgamento, a 4ª Turma concluiu que a recusa do investigado em submeter-se ao exame de DNA, marcado por dez vezes, ao longo de quatro anos, aliada à comprovação de relacionamento sexual entre o ele e a mãe do menor gera a presunção de veracidade das alegações do processo. Em outro processo a semelhante (REsp 55958), a Turma entendeu que a injustificável recusa do investigado em submeter-se ao exame de DNA induz presunção que milita contra a sua resignação. O parecer foi consolidado em outro caso sobre o mesmo tema, julgado pela 3ª.
A matéria se tornou lei depois o Congresso Nacional aprovar o PLC 31/2007, originário da Câmara dos Deputados. A Lei n. 8.560/1992 determina que, em registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida, o oficial remeterá ao juiz certidão integral do registro e o nome e prenome, profissão, identidade e residência do suposto pai, visando à verificação oficiosa da legitimidade da alegação. Se o suposto pai não atender, no prazo de 30 dias, a notificação judicial, ou negar a alegada paternidade, o juiz remeterá os autos ao representante do MP para que intente, havendo elementos suficientes, a ação de investigação de paternidade.
A lei sancionada esta semana acrescenta à Lei n. 8.560/1992 o artigo 2º-A e seu parágrafo único, os quais têm a seguinte redação: "Art. 2º-A Na ação de investigação de paternidade, todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, serão hábeis para provar a verdade dos fatos. Parágrafo único. A recusa do réu em se submeter ao exame de código genético DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório. Também está revogada a Lei n. 883, de 1949, legislação anterior que tratava nos filhos considerados ilegítimos, expressão rechaçada pela Carta Magna, que passou a denominá-los filhos havidos fora do casamento. ( http://www.jusbrasil.com.br/noticias/1624341/nova-lei-determina-que-recusa-em-fazer-teste-de-dna-presume-paternidade)

domingo, 2 de agosto de 2009

Cárcere privado domiciliar


Artigo de autoria do professor Damásdio Evangelista de Jesus, retirado do jornal Jornal Carta Forense, quarta-feira, 1 de julho de 2009

A grande imprensa vem noticiando, nos últimos dias, que, em quatro Municípios paulistas, decisões judiciais têm imposto uma forma de "toque de recolher" a menores de idade, proibindo-os de saírem de suas casas, depois das 22 horas, desacompanhados de seus pais ou responsáveis.
Uma dessas cidades já há vários anos colocou em prática tal restrição, por decisão judicial. As outras três fizeram-no bem recentemente, por medida consensual adotada pelo Conselho Tutelar e pela Vara da Infância e Juventude. A divulgação desses fatos gerou polêmica nos meios de comunicação social.
As justificativas são evitar a criminalidade juvenil, o tráfico de drogas, o alcoolismo etc., fundamentando, à primeira vista, medidas nobres e muito simpáticas.
Sem embargo disso, sou contra.
Não é à força de proibições taxativas ou de leis draconianas, ainda que contenham exceções, que se combatem más tendências da população. Campanhas educativas, com favorecimento dos bons exemplos e desestímulo dos maus costumes, mostram-se eficazes. Nunca me canso de repetir isso.
Quem não se lembra da famigerada Lei Seca, que vigorou nos Estados Unidos durante alguns anos, na primeira metade do século passado? Qual foi seu efeito concreto? Fez com que o consumo de álcool caísse no país ou, pelo contrário, incentivou o contrabando e, indiretamente, favoreceu o vício e a criminalidade? A resposta é clara.
Além de inoperante, essa medida, imposta por autoridades judiciárias de primeira instância, é, data venia, inconstitucional. Ela fere, sem a menor dúvida, o direito de ir e vir, consagrado universalmente como direito fundamental do homem. Infringe a nossa Carta Magna e, ademais, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Não é a primeira vez que afirmo: essa lei, ou medida, além de inconstitucional, não tem condições de ser executada. No caso, esse cárcere privado domiciliar tem meios de ser executado se não os temos para prevenir a criminalidade adulta? Quem estaria nas ruas, depois das 22 horas, à caça de menores andarilhos?
Cria, na prática, uma forma sui generis de cárcere privado domiciliar, à qual ficam a priori condenados todos os que ainda não completaram 18 anos.
As liberdades fundamentais da pessoa humana são por demais sagradas para ser expostas a risco. Elas foram uma conquista gradual de séculos de evolução das sociedades e não se pode renunciar a elas, ainda que para combater excessos, mesmo visando preservá-las.
Cuidado! Com fogo não se brinca, dizia-me minha vó Lili. É perigoso demais.
Essa a recomendação que, com todo o respeito pelos Magistrados que tomaram essas decisões, julgo-me no dever de fazer, com fundamento nas minhas frias madrugadas de estudo e nos meus longos dias de observação.
Toque de recolher, para quê? Afinal, não estamos em guerra! Parem de inventar!

CRIMINALIZAÇÃO DE CONDUTAS POR TRATADO DE DIREITO INTERNACIONAL


Publicado no blog em 02/08/2009



Em maio do ano de dois mil e três, o Congresso Nacional aprovou por meio de decreto legislativo o texto da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, adotada em Nova York, em 15 de novembro de 2000, oportunizando, assim, ao Presidente da República, através do Decreto n. 5015, de 12 de março de 2004, determinar em seu artigo primeiro a execução e cumprimento do texto legal daquele diploma que passou, a partir da sua publicação, a integrar a ordem jurídica interna.
Referido diploma elege uma série de instrumentos legais objetivando o combate ao crime organizado transnacional, como também conceitua a conduta que caracteriza crime organizado, levando o Conselho Nacional de Justiça ao entendimento de que estando o crime organizado tipificado legalmente em nosso ordenamento normativo, impusera-se a criação de varas especializadas para o seu julgamento, conforme Recomendação n.03, de 30 de maio de 2006.
O tema, no entanto, merece reflexão no âmbito do atual Estado de Direito Constitucional, enfocando-se os direitos e garantias individuais da pessoa humana ao longo de sua histórica trajetória, bem como a feição assumida pelo moderno Direto Penal que pretende ser garantista, indagando-se, num primeiro momento, se um Decreto presidencial, embasado em um Decreto Legislativo, pode criminalizar condutas, e ao mesmo tempo guardar harmonia com o principio constitucional da reserva legal que, dentre outros, informa o hodierno Estado de Direito Constitucional.
O Estado Democrático de Direito ideologicamente foi construído ao longo de árdua caminhada evolutiva, apresentando-se, inicialmente, num modelo absolutista, por centralizar o poder na figura do monarca, a quem cabiam todas as decisões relativas aos assuntos públicos.Neste período, o Estado, apesar de criador da ordem jurídica, a ela não se submetia.O poder, exercido de forma arbitrária, acabou sucumbindo ante as idéias reacionárias e filosóficas que permearam o Século das Luzes, dando lugar ao surgimento do Estado Liberal, que tinha como pressuposto não mais a sujeição do cidadão ao arbítrio e aos interesses do monarca, mas ao governo das leis provenientes da soberania popular.
O Estado de Direito Liberal, Positivista ou Legal, marca o inicio de sua trajetória com o movimento iluminista, com a derrocada do absolutismo, com a revolução francesa e estadunidense, culminando com a limitação do poder político do Estado pelo Direito, por meio de garantias individuais e pelas liberdades de expressão e associação.
Todavia, o formalismo que permeou as idéias de Kelsen, não comportando qualquer discussão em torno do conteúdo da lei, que sempre deveria prevalecer ,por resultar da vontade geral,delineou o poder judiciário como um órgão legalista, cuja concepção acerca da validade da lei estava condicionada a sua vigência. Lei válida era lei vigente , devendo ser sempre aplicada ao caso concreto, em nada importando se o seu conteúdo divorciava-se das garantias apregoadas no texto constitucional.
Sem êxito para se sustentar, o Estado Liberal cede espaço para a construção de uma nova concepção , fundada nos princípios da dignidade da pessoa humana.
O Estado Constitucional de Direito substitui o modelo anterior, acrescentando às conquistas até então adquiridas a eleição da Carta Magna e do Direito Internacional de Direitos Humanos(parágrafo 3º, art.5º ,CF),como referencial de validade para as leis infraconstitucionais. Tem como característica fundamental a supremacia da constituição, os direitos fundamentais ,a consagração do princípio da legalidade e a funcionalização de todos os poderes do Estado para garantir exercício desses direitos fundamentais incorporados na Carta Magna.
Destaca-se, ainda, outra marcante característica do Estado de Direito Constitucional consolidada na relevância do direito internacional de direitos humanos na ordem interna, ocupando posição hierárquica de destaque.
Sobre o tema, interessante decisão foi proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no final do ano passado, no HC 90.450/MG, onde as disposições contida no Tratado Internacional de Direitos Humanos, Pacto de São José da Costa Rica, prevaleceu sobre norma constitucional. Na oportunidade, assinalou o Ministro Celso de Mello, que o judiciário deve aplicar ao caso concreto a norma que melhor prestigie a dignidade da pessoa humana.
A questão da vigência e validade de uma norma não mais se discute pelo foco da horizontalidade ou temporalidade de outra que lhe seja superior ou mais antiga, mas se manifesta quando formalmente e materialmente guardar harmonia com a Constituição Federal e com o Direito Internacional de Direitos Humanos.
Neste contexto, o Poder Judiciário assume papel relevante , cabendo-lhe a tarefa de fazer valer os princípios constitucionais, sobretudo fazer valer as garantia e os direitos fundamentais conquistados no Estado Liberal. Abandona a postura legalista de mero aplicador da lei, para ocupar posição de vanguarda ao interpretar a lei diante da Constituição e dos Tratados e Convenções de Direitos Humanos ,incorporados a ordem interna, antes de aplicá-la. A lei ordinária não mais impera absoluta porque tenha adquirido vigência, é indispensável que tenha validade, e este processo interpretativo agora é atribuído ao judiciário, órgão encarregado de zelar pelas garantias constitucionais conquistadas.
Na solução dos conflitos aplica-se a lei que mais se adequa a solução do caso concreto, sobretudo quando a questão envolve direitos e garantias fundamentais. Foi assim que o Supremo Tribunal Federal garantiu a liberdade do depositário infiel, mesmo havendo disposição constitucional em sentido contrário. Ao aplicar as disposições do Direito Internacional, não se derrogou disposição constitucional, mas se prestigiou a dignidade da pessoa humana.
Por outro lado, a mesma solução não se verifica quando a internacionalização se refere a Tratados e Convenções em matéria penal, conforme acentua a melhor doutrina.
As normas penais incriminadoras que criam ou ampliam o jus puniendi devem ser originadas na lei, por decorrência do principio da reserva legal, um dos princípios resultantes das conquistas individuais que derrogou o Estado Absolutista, impondo a prévia existência de lei formal para a punição de crimes. Esta formalidade a que se refere o principio da Reserva Legal, é aquela que decorre da expressão da soberania popular.
Os Tratados e Convenções Internacionais, por força do disposto no artigo 84, VIII, são celebrados pelo Presidente da Republica, e embora tenham que obter aprovação pelo Legislativo, não podem ser por este alterados, menos ainda sofrer emendas, limitando-se o legislativo a aprovar ou não o texto do Tratado Internacional, via Decreto Legislativo.
O Congresso Nacional, no exercício da soberania popular, não pode alterar o conteúdo do que foi unilateralmente pactuado pelo Chefe do Executivo.
Portanto, não se pode dar aos Tratados e Convenções Internacionais de Direito Penal o mesmo tratamento dispensado aos Tratados e Convenções de Direitos Humanos, pois estes ampliam direitos e garantias, enquanto que aqueles cerceiam, restringem direitos e garantias, sobretudo o direito a liberdade.Dai porque, somente a espécie normativa resultante da vontade popular representada pelo Poder Legislativo, pode criminalizar condutas ou restringir direitos e garantias.
“Como dizia o Marquês de Beccaria,Cesare Bonessana, só uma norma procedente do poder legislativo, que representa toda uma sociedade unida pelo contrato social, pode limitar a sagrada liberdade do individuo, definindo os delitos e estabelecendo penas.” ( GOMES, Luiz Flavio,2008, pag.41.)
Ademais, importa reconhecer não existir, até então no Brasil, legislação penal incriminadora que tenha definido e tipificado conduta que caracterize crime organizado.
Em pleno vigor a Lei 9.034/95 que, alterada pela Lei 10.217/01, não define o tipo penal de crime organizado, estando em pauta acirrada discussão doutrinária e política, referente ao conceito de organização criminosa.
Todavia, com a inclusão da Convenção de Palermo no ordenamento jurídico brasileiro, trazendo o conceito de organização criminosa, alguns setores da doutrina passaram a entender por encerrada a discussão em torno do tema, tendo a Convenção condições de ser aplicada de imediato.
O Supremo Tribunal Federal, em julgamento do HABEAS CORPUS Nº 77.771 - SP (2007/0041879-9), acolheu a conceituação de organização criminosa definida pela Convenção de Palermo, e sustentou que referido diploma legal tem aplicabilidade imediata no âmbito normativo interno.
No entanto, o artigo 22 da Constituição Federal expressamente determina que somente a União pode legislar sobre Direito penal .Somente o Estado,através do poder legislativo, detentor do direito de punir, é o único titular da criação e ampliação do jus puniendi, cabendo-lhe exclusivamente a criação de normas penais que incriminam condutas.
Ademais, “em matéria penal que incrimina condutas, o princípio da reserva legal adquire dimensão de destaque. Inserido no inciso XXXIX, do artigo 5º da Constituição Federal, exige que a conduta , para ser crime, deve subsumir-se ao tipo legal definido por lei. Mas ainda há que se perguntar: que lei? A resposta é : a lei formal, a lei produzida pelo Congresso Nacional segundo o procedimento constitucionalmente estabelecido Pois cabe a União legislar sobre a matéria( art. 22,I ). Não se admite a definição de infração penal nem por decreto,nem por lei delegada e, conseqüentemente, nem por medida provisória.”( SILVA, Jose Afonso, 2009, pag.138).
Ainda, colhe-se da doutrina de Rogério Greco:-
“Um direito Penal que procura estar inserido sob uma ótica garantista deve obrigatoriamente discernir os critérios de legalidade formal e material, sendo ambos indispensáveis à aplicação da lei penal .Por legalidade formal entende-se a obediência aos tramites procedimentais previstos pela Constituição para que determinado diploma legal possa vir a fazer parte de nosso ordenamento jurídico. Contudo , em um Estado Constitucional de Direito , no qual se pretende adotar um modelo penal garantista, além da legalidade formal deve haver, também, aquela de cunho material. Devem ser obedecidas não só as formas e procedimentos impostos pela Constituição , mas também,e principalmente, o seu conteúdo, respeitando-se suas proibições e imposições para a garantia de nossos direitos fundamentais por ela previstos” (GRECO, Rogério, 2008, pag. 98,99).
Atualmente não se pode deixar de considerar que o modelo de direito penal no Brasil se pauta pelos princípios limitadores do poder punitivo do Estado, previstos na Constituição Federal, deixando de ser legitima a intervenção Estatal no direito a liberdade do cidadão quando se apresentar criminalizando condutas por vias opostas a legalidade formal e material.
O ordenamento jurídico penal ainda não apresenta lei vigente e válida que conceitue crime organizado, ante a ausência da descrição típica da referida conduta proibida. A Convenção de Palermo , além de ser espécie normativa desprovida de legalidade formal, não se prestando a criminalização de condutas na ordem interna, conceitua o que vem a ser crime organizado transnacional, não preenchendo o vácuo existente pela falta de conceituação legal de crime organizado sem os contornos da transnacionalidade. Ademais, é principio basilar do Estado Constitucional a vedação do emprego de analogia ou qualquer outro recurso para a criminalização de condutas.
2.
Conclusão
O atual Estado de Direito Constitucional sustenta-se em vários pilares, dentre os quais está o principio da legalidade( formal e material), sobretudo em matéria penal, pois a subordinação de todos a lei é a única forma de se evitar a intervenção arbitraria do Estado nos direitos e garantias dos cidadãos.
A Resolução do Conselho Nacional de Justiça que determina a criação de varas especializadas para o julgamento de crimes que sequer encontram tipificação no direito penal e o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, admitindo a conceituação de organização criminosa adotado pela Convenção de Palermo, instrumento legal que, embora integrado a ordem interna, não se submeteu ao devido processo constitucional para sua formalização, parecem se distanciar do modelo garantista e constitucional do atual Estado de Direito.
Em matéria penal é preciso refletir se uma postura pró-ativa do judiciário comprometeria seu perfil moderno de escudeiro dos direitos fundamentais do cidadão, arduamente conquistados ao longo do processo evolutivo do Estado de Direito, pois qualquer restrição ao direito a liberdade sem a observância da legalidade formal e material, aumentando o poder punitivo do Estado, poderia ensejar um retrocesso ao antigo e derrocado modelo de Estado Absolutista, com a diferença do poder se concentrar não mais nas mãos de um soberano, mas sob a autoridade daquele órgão que deve, sob a égide de uma constituição cidadã e garantista , ser o fiel guardião das garantias conquistadas, sobretudo ao aplicar o Direito e promover a Justiça.
3. Referências Bibliográficas
ACKERMAN,Bruce.A Nova Separação dos Poderes.Rio de Janeiro:Lumen Juris,2009. p.07-22.
GOMES, Luiz Flavio.Estado Constitucional de Direito e a Nova Pirâmide Jurídica. 1º ed.São Paulo:Ed. Premier,2008 pag.41-66.
GRECO,Rogério. Curso de Direito Penal,Parte Geral.10º ed. .Rio de Janeiro:Ed. Impetus,2008,pag. 98-100.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 1Oº ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2009, pag. 25 -28.
REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 11 º ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008, pag. 102-110.
SILVA, Jose Afonso. Comentários Contextual À Constituição. 6º ed. São Paulo: Ed. Malheiros Editores, 2009, pag.138-140