quinta-feira, 10 de junho de 2010

Proibição das pulseirinhas do mal

Damásio Evangelista de Jesus Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo - Aposentado. Doutor "Honoris Causa" em Direito pela Universidade de Estudos de Salermo - Itália. Presidente e Professor do Compléxo Jurídico Damásio de Jesus. Autor de diversas obras pela Editora Saraiva. 

Valho-me do velho aforismo jurídico para responder às medidas, anunciadas pelos meios de comunicação, proibindo o uso e venda, para menores de 18 anos, das chamadas "pulseiras do sexo". Transformadas em sinais sexuais conforme as cores, quando arrebentadas por um conhecido ou estranho (to snap away), dá-lhe o direito, como se fosse um jogo, de receber uma recompensa, que pode ser desde o simples beijo até o momento consumativo da saciedade libidinosa. Suspeitas de serem a causa de estupros de jovens que as usavam, viraram caso de polícia.

De acordo com as notícias, Rio de Janeiro, Manaus, Campo Grande, Sertãozinho, Florianópolis e Maringá proibiram o acessório, sendo as ordens determinadas pelos Juizados da Infância e da Juventude, Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais. No caso de seu descumprimento por escolas públicas e particulares, às quais se confere a obrigação de observância e vigilância, são previstas multa e cassação de alvarás de funcionamento. É verdade: ameaçam fechar as escolas desobedientes.

Às pulseiras de silicone conferiu-se, pelo visto, uma ambígua função erótica. Atraem por ser um adereço simples, barato, colorido e descartável e, ao mesmo tempo, oferece um produto segundo um código perverso. Nem sempre braços inocentes de nossas crianças e adolescentes ostentam o adorno com o pleno conhecimento sobre o novo significado que a loucura humana lhe atribuiu.

Proibir o uso das pulseiras não anula a presença de uma patologia social que, fatalmente, se manifestará de outra forma: de pulso para pescoço; de pulseira para brinco.

O abuso sexual, ao lado de outros tantos, é  a ponta de um dos muitos icebergs que se enroscam nos alicerces de nossas instituições, bem lá no fundo, neste mar encapelado que é a sociedade. Como ocorre no Direito Penal, pretende-se, com uma nova lei incriminadora, reduzir a prática delituosa, esquecendo-se de combater a verdadeira fonte do mal.

Não há pessimismo em minhas observações, mas, quando a Polícia e o Ministério Público são instados a interferir em determinado fenômeno social, é sinal de que as partes já  esgotaram sua capacidade de conciliação: a agressão física ou moral à pessoa já se configurou. Há uma situação de fato.

Proibir a causa imediata de algo que consideramos errado nos põe a pensar. Estariam as jovens, portando as pulseiras, provocando os homens à prática sexual, sendo, por isso, responsáveis pelas ocorrências? Creio que não. Estão desprezando, nesse contexto, da questão de coibir o arrebatamento do adorno, na maioria esmagadora praticado pelo homem. Pensam da seguinte forma: se a jovem não usar pulseira, não haverá ataque. Logo, proíba-se o uso. Então, elas são culpadas pelo fato? Quer dizer que não têm capacidade de reger o próprio corpo? Engano. Melhor do que a proibição é a educação, o que algumas escolar estão fazendo por intermédio de panfletos, palestras etc.

Matutando sobre o assunto, como dizia meu pai, lembrei que nos tempos de enchente, ao represar a água, sabemos que está contida e temos o domínio técnico sobre ela. E, empregando esse controle de modo a canalizá-la para aquilo que é o desejável, ela continua lá, com toda a sua força pressionando a barragem que a contém. No caso das bijuterias coloridas, proibindo o uso porque existe abuso é imaginar que, como o represamento da água, iremos estagnar o fenômeno. Essa medida, contudo, não vai alterar a conduta sexual dos nossos menores.

Na cidade de São Paulo, os homicídios, só no primeiro trimestre deste ano, cresceram 12% em relação ao mesmo período de 2009, conforme informa a Secretaria de Segurança Pública. Ora, se começarem a praticar venefícios (homicídios por envenenamento), proibiremos a venda de venenos? No trânsito, estamos matando cerca de 35 mil pessoas por ano. Seria, então, caso de proibirmos a fabricação de automóveis? O caminho, por certo, não é esse.

Nossas crianças e jovens estão na linha de frente: são os alvos prediletos de anormais de toda espécie: traficantes de drogas, internautas bandidos e personalidades doentias, muitas vezes com o dever de garantir-lhes segurança e proteção,. Por que as crianças e jovens? Porque acreditam serem os mais vulneráveis, e o são. E, por que o são? Faltam-lhes, na maior parte dos casos, saúde física e mental, educação informal e formal. Aprendem, desde cedo, um falso conceito de sabedoria: sabido é o esperto; esperto, o que se dá bem. E "dar-se bem" nem sempre é sinônimo de viver honestamente. É nesse tecido social desfiado que crescem nossas crianças.

Está proibido o uso? Muito bem, então não mais se usa pulseira, minissaia, calçados e cintos coloridos, lenços nos bolsos, colar, distintivo, unhas pintadas de cores diferentes, cabelos coloridos, lenço de cabelo, decote, anel, brinco, biquíni, broche, boné, peruca colorida, laço no pescoço. Mas, e daí? Proibir o uso resolve alguma coisa? Só vamos mudar endereço corporal do adereço: pescoço, pés, tornozelos, orelhas. E o próprio adereço: boné, brinco etc.

Continuo considerando urgente uma revisão de valores, uma atualização de conceitos, uma educação verdadeiramente redentora para efetivamente dar a cada um a capacidade e o direito de saber o que fazer e o que não fazer com o próprio corpo.

Artigo copiado do site : http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=5557

STJ erra e incrementa a Violência de Gênero


 Luiz Flávio Gomes Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

No dia 24.02.10 a Terceira Seção do STJ (Quinta e Sexta Turmas) concluiu ser indispensável a manifestação da vontade da vítima para a propositura da ação penal (que seria pública condicionada) no caso de lesão corporal leve praticada contra mulher, no âmbito familiar ou doméstico ou de relacionamento íntimo. Desde a edição da Lei 11.340/2006 (lei Maria da Penha) reina muita controvérsia sobre esse ponto, tendo em vista o conflito legislativo estabelecido entre o art. 41 (da referida lei), que dispensa a representação da vítima, e o art. 16 (da mesma lei), que proclama a necessidade dessa representação.
Em se tratando de violência de gênero, não há dúvida que a norma mais favorável (princípio pro homine) é a que não exige nenhum tipo de manifestação de vontade da vítima (art. 41), porque quem está subjugado (culturalmente) não tem liberdade de atuação.
O equívoco do STJ (com a devida venia) consistiu em tentar solucionar a questão jurídica pendente só de acordo com os parâmetros legalistas (esquecendo-se das demais fontes do direito: constitucionalista, internacionalista e universalista). Parece, ademais, não ter entendido o conceito de violência de gênero, a questão do bem jurídico (suprandividual) e a posição frágil da mulher nesse contexto de violência machista.
A lei Maria da Penha, com todas as suas medidas protetivas, parte da premissa de que existe desigualdade (na violência de gênero) entre o homem e a mulher. Exigir da pessoa subjugada (culturalmente) a manifestação da sua vontade para que possa o Estado atuar na esfera criminal (exigência de representação) é uma contradição inominável. Primeiro a lei diz que uma das partes (na violência de gênero) está inferiorizada (a mulher). Depois a jurisprudência exige dessa parte inferiorizada uma manifestação de vontade livre. Como? A contradição é mais do que patente!
Faltou ao STJ uma visão de conjunto. O grave problema de quem só vê algumas árvores é que  não consegue enxergar a floresta. Só no dia em que a mulher já não mais estiver inserida nesse contexto relacional (e cultural) hierarquizado é que se poderá falar em manifestação livre da sua vontade. Por ora, essa não é a realidade (nem o padrão) cultural do nosso país. O STJ, ao concluir (majoritariamente) pela exigência da representação da vítima não reconheceu a realidade cultural brasileira nem percebeu a imperiosa necessidade (na atualidade) da conjugação de todas as fontes do direito. Ignorou-se o que Miguel Reale chamava de referenciabilidade social da lei.
Pesquisa da ONG Promundo, com homens jovens da Maré, no Rio, mostrou que 35% acham "justificável" bater em mulher quando ela se veste ou se comporta de maneira provocante (O Globo de 30.03.09, p. 10).  Mais: 10% acham que é legítimo o uso de violência psicológica contra a mulher e 15% admitiram que bateram em "sua" mulher nos últimos seis meses. Essa crença popular (machista) de que o homem pode bater na ("sua") mulher constitui um exemplo que bem expressa a violência de gênero (que é, repita-se, cultural).
A cada dezoito segundos uma mulher é agredida no planeta (dados da ONU, segundo Xavier Torres, no prefácio do livro Maltrato, um permiso milenario, de Ana Kipen e Mônica Caterberg, Barcelona: Internón Oxfam, 2006, p. 23). No Brasil temos um espancamento contra a mulher em cada quinze segundos (pesquisa levantada por Alice Bianchini junto à Fundação Perseu Abramo). Isso explica porque a preocupação número um das mulheres no Brasil continua sendo a violência doméstica (56%, conforme Pesquisa feita com duas mil pessoas em todas as regiões do país, entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 2009 - Ibope e Instituto Avon).
A lei partiu de uma premissa: há desigualdade (fática) entre o homem e a mulher (daí a necessidade de proteção). Isso feriria a isonomia? Não. O princípio da igualdade é não somente formal, senão sobretudo material. Cabe à lei tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente. Em matéria de violência de gênero a mulher é desigual em relação ao homem (ela é vista de forma inferiorizada, hierarquizada). Logo, deve ser tratada de maneira diferente. Não existe uma discriminação odiosa, não justificada, em favor da mulher. Ao contrário, é com as medidas protetivas da lei que se busca o equilíbro.
O STJ, não tendo entendido bem o conceito (violência de gênero) tampouco conseguiu vislumbrar o bem jurídico protegido, que é supraindividual (a lei procurou regrar imediatamente não a integridade física da mulher, sim a eliminação da sua submissão; o bem jurídico protegido na violência de gênero diz respeito à eliminação de uma desigualdade que é patente em sociedades com padrões sócio-culturais machistas e discriminatórios). Cuidando-se de um bem jurídico supraindividual, não há que se falar em representação da vítima (ou de uma vítima, que não tem legitimidade para falar em nome do todo).
A conclusão do STJ, de outro lado, desconsiderou (completamente) o direito internacional (embora seja ele hoje uma das legítimas fontes do direito). Já no preâmbulo da Lei Maria da Penha foi feita menção a dois importantes documentos internacionais que tratam do tema ligado à violência contra a mulher: (1) Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher - CEDAW, ratificada pelo Brasil em 1984 e (2) a Convenção de Belém do Pará, ratificada no ano de 1995.
Ao ratificar a Convenção de Belém do Pará, o Brasil comprometeu-se a "incluir em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas, assim como as de outra natureza que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher e adotar as medidas administrativas apropriadas que venham ao caso" (art. 7.º, c).
A decisão do STJ (Terceira Seção, por maioria) contrariou (flagrantemente) o disposto no art. 2º, "c", da mesma Convenção, que diz: [Os Estados-partes se comprometem a (...)] "estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher em uma base de igualdade com os homens e garantir, por meio dos tribunais nacionais competentes e de outras instituições públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de discriminação".
Tudo que a decisão da Terceira Seção não fez foi atender o preceito (internacional) ora transcrito. A proteção jurídica (efetiva) da mulher, dentro do contexto da violência de gênero, conduz a conclusão totalmente oposta à adotada pelo STJ. Como esperar proteção jurídica da mulher (dentro de um contexto relacional inferiorizado, subjugado) se referido tribunal quer que ela "se rebele" (por conta e risco próprios) contra seu agressor?
O STJ certamente estava pensando numa mulher "hércules", porém, não é isso que existe na realidade. Fechou os olhos para os fatos, continuou preso às amarras legalistas tradicionais e, dessa forma, não só se distanciou do direito internacional, como está contribuindo para a reprodução da violência machista (que primeiro vitimiza a mulher por razões culturais, depois a vitimiza para não ser processado criminalmente assim como para assegurar a perpetuidade da sua "superioridade" machista).
O Estado brasileiro (ou seja: todas as suas autoridades) possui a obrigação internacional de atuar em conformidade com o direito respectivo. Um dos seus deveres consiste em "abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação contra a mulher" (art. 2º, "d", da Convenção citada). A interpretação do STJ (Terceira Seção), na medida em que favorece a violência de gênero, está incorrendo numa lamentável prática de incremento de discriminação contra a mulher (exigindo dela uma hercúlea tarefa típica do machismo, que no contexto em que ela está submetida só é inerente à outra parte, a agressora).
Se de um lado parece muito acertado afirmar que a mulher não tem nada a ver com a visão culturalmente deturpada do sexo frágil, de outro, tampouco parece ajustado pretender que ela se comporte como "hércules" (enfrentando todas as marés e adversidades possíveis). Da mulher discriminada, subjugada, corroída em sua independência e liberdade, não se pode esperar atos heróicos ou épicos (ou de coragem sobrenatural, como disse o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho).  

link da publicação do artigo://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=5561

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Recurso de Apelação- Principio da Verdade Real- Ausencia Ministério Público da Audiência de Instrução e Julgamento

AUTOS: 2008.0206.4897
ACUSADO: JOSÉ LINHARES DOS SANTOS




MM. Juiz;

A Promotora de Justiça que esta subscreve, não se conformando, data vênia, com a decisão proferida nos autos (fls. 108/120), a qual absolveu o acusado com base no inciso VII do artigo 386 do Código de Processo Penal, vem, respeitosamente, com fundamento no artigo 593, inciso I, do Código de Processo Penal, à presença de Vossa Excelência, interpor, tempestivamente, APELAÇÃO nos termos a seguir expostos (razões recursais em anexo).
Requeiro seja recebida e processada a presente apelação e encaminhada, com as inclusas razões, ao Egrégio Tribunal de Justiça.


AUTOS: 2008.0206.4897
APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO



Egrégio Tribunal
Colenda Câmara


Em que pese o ilibado saber jurídico do Meritíssimo Juiz “a quo”,não agiu o mesmo com o costumeiro acerto ao prolatar a respeitável decisão , afastando-se totalmente do maior de todos os princípios que informam o processo penal, o da verdade real, razão pela qual a reforma do decisium é medida imperiosa.O apelado foi absolvido da imputação denunciatória que lhe atribuiu a pratica do crime prevista no artigo 157, § 3º do Código de Processo Penal, haja vista que, com intenção de subtrair valores econômicos da vítima, e alguns de seus pertences ,desferiu-lhe vários golpes de pauladas provocando-lhe o resultado morte.
Na oportunidade de alegações finais, a acusação requereu a condenação do apelado, ante a certeza da materialidade e autoria, ressaltando a incoerência das declarações prestadas pelo mesmo e a importância das provas colhidas no inquérito policial para formação do livre convencimento do Magistrado.

A defesa aduziu que em respeito ao princípio do contraditório e ampla defesa não se deveria considerar as provas colhidas na fase inquisitorial, pugnando pela absolvição.Acolhendo a tese defensiva o apelado foi absolvido , ante o artigo 386, inciso VII, do Código Processual Penal, baseado na restrição relativa à produção da prova testemunhal em decorrência da nova redação conferida ao artigo 212 do CPP pela Lei 11.690/2008 e na proibição da avaliação da prova contida no inquérito policial como fundamento para condenação.
Para tanto, o magistrado valeu-se da ausência da apelante em audiência de instrução e, cruzando os braços ante a prova que lhe fora endereçada, por ser o destinatário direto da prova indicada pelas partes direto, cerrou os olhos e permitiu que o desequilíbrio processual favorecesse a defesa.
Invocando o artigo 212 do Código de Processo Penal, o magistrado alegou que não é mais conferida ao juiz a iniciativa de perguntas às testemunhas, cabendo-lhes tão somente complementar os pontos não esclarecidos durante a inquirição realizada diretamente pelos sujeitos processuais. Esqueceu-se, o culto magistrado que a prova não é da parte, mas do processo, e que lhe incumbe buscar a verdade real , pois a prolação da sentença exige do condutor do processo postura muito maior do que a de mero expectador , sem qualquer comprometimento com a busca da verdade que lhe é posta a apreciação.
Neste sentido, o entendimento do Ministro Francisco Campos, que assenta na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal (item VII):

“O projeto abandonou radicalmente o sistema chamado de certeza legal. (...) O juiz deixará de ser um espectador inerte da produção de provas. Sua intervenção na atividade processual é permitida, não somente para dirigir a marcha penal e julgar a final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe parecem úteis ao esclarecimento da verdade. Enquanto não tiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa, e houver uma fonte de prova ainda não explorada o juiz não deverá pronunciar o in dúbio pro réu ou o non liquet”.
Deste modo, fica em destaque, que a liberdade do Juiz diz respeito à análise das provas constantes dos autos, cabendo a ele buscar, fora deles, eventuais provas que entenda pertinentes.A imprescindibilidade do processo decorre da relevância da prova, uma vez que esta destina a assegurar a verdade. Todavia, no processo penal não se trata apenas da verdade formal, mas também da verdade material, real, que autoriza o juiz a deixar a posição de mero espectador da produção probatória para avançar na pesquisa histórica da verdade, independente da vontade das partes (Das provas penais, Bogotá, Temis, 1998, t. I, p. 27-28).
Assim, apesar da ausência do Ministério Público em audiência, cabia ao magistrado em busca da verdade real perquirir as testemunhas presentes, deixando de fazê-lo, portando-se como mero expectador dos fatos que lhe eram apresentados, conforme se depreende pelo termo de assentada da testemunha IGOR DE SOUZA VIEIRA e AURELIANO GONÇALVES (fls. 95 e 96).
Tão pouco apresentou questionamentos suplementares a testemunha ALAN PEREIRA MARTINS (fls. 94), visando possíveis esclarecimentos do fato.Limitou-se, a abrir as Audiência de instrução e qualificar as testemunhas , deixando de indagá-las a respeito dos fatos de que tinham conhecimento, para posteriormente , em sentença, ditar a inocência do réu ante a falta de prova que ele mesmo, julgador, deixou de perquirir :-
“(...) Na presente situação, é bem verdade que a absolvição do acusado não representa pura e cristalina declaração da inocência (...)”. Trecho da sentença, às fls. 115/116.
Vislumbra-se, verdadeira afronta ao PRINCÍPIO DA VERDADE REAL, posto que é dever deste superar a iniciativa das partes na colheita do material probatório, esgotando todas as possibilidades para alcançar a verdade real dos fatos, como fundamento da sentença.Preconiza Fernando da Costa Tourinho Filho sobre o princípio da verdade real: “o ordenamento confere ao Juiz penal, mais que ao Juiz não penal, poderes para coletar dados que lhe possibilitem, numa análise histórico-crítica, restaurar aquele acontecimento pretérito que é o crime investigado”.
Uma das características mais marcantes do processo penal é a vigência de tal princípio, que sugere ao juiz criminal não se satisfazer com a mera verdade formal que lhe é exibida pelas partes, de maneira que deve buscar a verdade, independente ou para além da contribuição da acusação e da defesa.
Não se admite a posição de inércia no âmbito criminal. Portanto, deve o Magistrado procurar adequar sua decisão não somente à prova apresentada pelas partes, mas, além disso, suprindo eventual omissão dos interessados, pesquisar os fatos, aproximando-os o mais possível, da verdade material.

No mesmo sentido defende o Tribunal Superior:

“APELACAO CRIMINAL. HOMICIDIO QUALIFICADO. OITIVA DO CO-REU COMO INFORMANTE. CONTRADICAO NA VOTACAO DOS QUESITOS. INEXISTENCIA. NAO CONFIGURACAO DA LEGITIMA DEFESA. DECISAO CONTRARIA A PROVA DOS AUTOS. INOCORRENCIA. 1 - NO PROCESSO PENAL VIGORA O PRINCIPIO DA VERDADE REAL, EM QUE O JULGADOR FORMA SUA CONVICCAO PELA LIVRE APRECIACAO DA PROVA, DEVENDO PERSEGUIR TODOS OS ELEMENTOS NECESSARIOS A INSTRUCAO DO PROCESSO, A FIM DE QUE POSSA, TANTO QUANTO POSSIVEL, DESCOBRIR A VERDADE DOS FATOS OBJETOS DA ACAO PENAL. 2 - NAO HA QUE SE COGITAR DE IRREGULARIDADE NO PROCESSO PELO FATO DE TER O CO-REU PRESTADO DEPOIMENTO EM PLENARIO DO JURI, SOBRETUDO EM SE CONSIDERANDO QUE NAO HOUVE TESTEMUNHA OCULAR DO FATO. ADEMAIS, O DEPOIMENTO FOI COLHIDO COMO INFORMANTE DO JUIZO, E NAO COMO TESTEMUNHA COMPROMISSADA, COMO SUSTENTOU A DEFESA. 3 - NAO RESTOU CONFIGURADA A CONTRADICAO NA VOTACAO DOS QUESITOS, VISTO QUE NAO HOUVE RECONHECIMENTO DA DISCRIMINANTE PELOS JURADOS. PARA A CONFIGURACAO DA LEGITIMA DEFESA IMPRESCINDIVEL QUE HAJA AGRESSAO E QUE ESTA SEJA ATUAL OU IMINENTE. AUSENTE UM DOS REQUISITOS, DESCARACTERIZADA ESTA A OCORRENCIA DA EXCLUDENTE. 4 - HAVENDO MAIS DE UMA VERSAO SOBRE O FATO CRIMINOSO, E LICITO AO JURADOS OPTAR POR QUALQUER DAS TESES APRESENTADAS EM PLENARIO, DESDE QUE ESTA ENCONTRE AMPARO NOS SUBSTRATOS FATICOS DO PROCESSO. 5 - APELO IMPROVIDO. ACORDAM OS DESEMBARGADORES DO EGREGIO TRIBUNAL DE JUSTICA DO ESTADO DE GOIAS, POR SUA SEGUNDA TURMA JULGADORA DA SEGUNDA CAMARA CRIMINAL, NA CONFORMIDADE DA ATA E ACOLHENDO O PARECER MINISTERIAL, A UNANIMIDADE, CONHECEU DO APELO E O IMPROVEU, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR. CUSTAS DE LEI." (TJGO, 2A CAMARA CRIMINAL, 29921-3/213 - APELACAO CRIMINAL).

Tamanha é relevância deste princípio que os doutrinadores o realçam e o explicam, destacando-se , neste sentido,o entendimento de Guilherme de Souza Nucci:

"... falar em VERDADE REAL implica provocar no espírito do JUIZ um sentimento de busca, de inconformismo com o que lhe é apresentado pelas partes, enfim, um impulso contrário à passividade. Afinal, estando em jogo direitos fundamentais do homem, tais como liberdade, vida, integridade física e psicológica e até mesmo honra, que podem ser afetados seriamente por uma condenação criminal, deve o JUIZ sair em busca da VERDADE material, aquela que mais se aproxima do que realmente aconteceu. (Nucci, Guilherme de Souza in Manual de Processo Penal e Execução Penal. 2ª ed, revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 95). 

E o mesmo autor conclui que "o PRINCÍPIO da VERDADE REAL significa, pois, que o magistrado deve buscar provas, tanto quanto as partes, não se contentando com o que lhe é apresentado, simplesmente" (Nucci, Guilherme de Souza in Manual de Processo Penal e Execução Penal. 2ª ed, revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 96).

A atuação do Magistrado em busca da VERDADE REAL ganha realce na atualidade em que os processualistas passam a defender o ativismo judicial, ou seja, rechaça-se a figura do JUIZ inerte e dependente das partes, propondo-se a atuação efetiva do JUIZ na busca da VERDADE, ainda que de ofício, garantindo-se à população uma atividade jurisdicional digna e justa, fazendo valer os preceitos preconizados na Constituição da República de 1988. 

Defendendo a atuação ativa dos magistrados, salienta o Juiz Federal Artur César de Souza: 

"... em que pese o JUIZ não tenha disponibilidade sobre o objeto do processo, o qual foi delimitado pelo conteúdo fático trazido pela parte "acusatória", o mesmo não ocorre em relação ao resultado da atividade jurisdicional, sempre dependente das provas apresentadas e colhidas na relação jurídica processual".
"Tendo em vista que a atividade jurisdicional visa a um processo justo e equânime, justifica-se que o órgão jurisdicional possa realizar as diligências necessárias no sentido de concretizar e alcançar a efetiva tutela jurisdicional". (O ativismo judicial no processo penal e a imparcialidade do Juiz, disponível em http://www.revistadoutrina.trf4.gov.br/indices/edicao17.htm, acesso em 17/07/2008).
O artigo 156, II do CPP estabelece não ser absoluta a regra que o ônus da prova cabe à parte que fizer a alegação, pois o juiz pode determinar de ofício, diligência para dirimir dúvida sobre ponto relevante.

Do mesmo modo, temos o artigo 502 que confere ao juiz a possibilidade de ordenar diligências para sanar qualquer nulidade ou suprir falta que prejudique o esclarecimento da verdade, quando da conclusão dos autos para sentença.Também argumentou o magistrado que a ilicitude do fato deve ser embasada exclusivamente na prova jurisdicionalizada, conforme comando do artigo 155 do CPP. E ainda, que as informações colhidas na investigação não são provas produzidas de acordo com o contraditório, não devendo se quer ser levadas em consideração pelo juiz criminal.
Insta salientar que tal questão foi inclusive objeto de emenda perante o Senado Federal, todavia não foi acolhida pela Câmara dos Deputados. Por conseqüência o magistrado não está impedido de considerar as informações colhidas na fase inquisitiva, basta que o faça de forma razoável bem como, que apresente as razões que o levaram a utilizar o elemento probatório contido no inquérito policial.
Ressalte também que o inquérito policial, não segue mais o antigo paradigma da investigação inquisitória, havendo, atualmente, a observância às garantias do acusado no que tange à ampla defesa, sendo, inclusive, assegurado o acesso do advogado aos autos, ainda que determinado o sigilo do inquérito.
Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, na obra Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito defendem este raciocínio:
“Não se deve, entretanto, desconsiderar os elementos amealhados no inquérito policial (...) mostram-se hábeis na formação do convencimento do magistrado. (...) No entanto, não deve o ser totalmente ignorada, podendo se agregar à prova produzida em juízo, servindo como mais um elemento na formação da convicção do julgador, sobretudo porque colhida, via de regra, de forma imediata, logo após a prática delituosa”.
Prova disso está na imputação dos fatos proferida pelo apelado em juízo, eis que atribuiu a conduta as pessoas de Pirata e Corimba. Porém emerge da peça inquisitiva que os mesmos estavam trabalhando durante a ocorrência do delito (fls. 40, 44 e 48). Fato este, embora de extrema importância, desconsiderado pelo magistrado ao proferir a sentença.Ademais, testemunhas da acusação foram dispensadas, sem a oitiva do apelante, sem que nos autos conste o motivo da ausência das mesmas em audiência , tudo de modo a causar nulidade processual.
Assim, violado principio da verdade real, bem como sendo dispensada, pelo magistrado, testemunha da acusação sem previa oitiva da apelante, impõe-se a nulidade da instrução, a partir do interrogatório. E, se assim não for o entendimento desta Colenda Câmara, pugno pela CONDENAÇÃO do réu.



DECISÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE GOÍAS ACOLHENDO INTEGRALMENTE E POR UNANIMIDADE DE VOTOS O RECURSO MINISTERIAL

Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Gabinete do Desembargador Leandro Crispim
APELAÇÃO CRIMINAL Nº 35.622-8/213(200900676420)
COMARCA DE QUIRINÓPOLIS
APELANTE MINISTÉRIO PÚBLICO
APELADO JOSÉ LINHARES DOS SANTOS
RELATOR DESEMBARGADOR LEANDRO CRISPIM
R E L A T Ó R I O
O representante do Ministério Público, no exercício de suas funções perante o juízo da Comarca de Quirinópolis/GO, ofereceu denúncia contra José Linhares dos Santos, vulgo 'Paraibinha', qualificado nos autos, dando-o como incurso nas sanções do artigo 157, caput,parágrafo terceiro, do Código Penal.

Narra a denúncia que: “[...] no dia 09 de maio de 2008, na Fazenda Sete Lagoas, Córrego Vertentinha, município de Gouvelândia-GO o indiciado, mediante violência (emprego de arma branca), subtraiu R$800,00 (oitocentos) reais,uma bicicleta e um revólver calibre 38, preto, numeração raspada,municiado, conforme declaração de fls. 30 e auto de exibição e apreensão de folhas 17.
Segundo se apurou, o denunciado, com a intenção de subtrair valores econômicos da vítima desferiu-lhe vários golpes de pauladas provocando-lhe o resultado morte conforme demonstrado no exame de corpo e delito de fls. 42/47. [...]”.
A denúncia foi recebida em 03/07/2008 (f.78/79).
O acusado José Linhares dos Santos foi citado (f. 81 e 81 verso) e interrogado (f. 82/84).Apresentou defesa prévia por defensor constituído (f. 85).Na instrução, foram inquiridas 03 (três) testemunhas arroladas pela acusação (f. 94/96). Foi dispensada a testemunha não comparecente (f. 97). Na fase do artigo 499 do Código de Processo Penal, as partes não se manifestaram (f.97).Em alegações finais, em forma de memorial,o Ministério Público pleiteou a condenação do acusado José Linhares dos Santos, pela prática do
delito tipificado no artigo 157, caput, § 3º, do Código Penal (f. 98/101).Laudo de Exame Pericial (f. 102/104).Em alegações finais, em forma de memorial, o acusado pediu a sua absolvição por insuficiência de provas (f. 105/107). O magistrado singular, Dr. Péricles DiMontezuma, julgou improcedente a denúncia e absolveu o acusado José Linhares dos Santos, nos termos do artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal (f. 108/120).
Inconformado, o Ministério Público interpôs apelação (f. 122/130), onde pleiteia a reforma da sentença no sentido de que o acusado José Linhares dos Santos seja condenado nas sanções do artigo 157, caput, § 3º, do Código Penal.Diz que, apesar da ausência do Ministério Público em audiência, cabia ao magistrado singular, em busca da verdade real, inquirir as testemunhas presentes a respeito dos fatos.Sustenta que o princípio da verdade real foi violado, pois o magistrado deve buscar provas, tanto quanto as partes.

Alega, ainda, que “testemunhas da acusação foram dispensadas, sem a oitiva do apelante, sem que nos autos conste o motivo da ausência das mesmas em audiência, tudo de modo a causar nulidade processual”. Requer a nulidade da instrução a partir do interrogatório do acusado, em face da violação do princípio da verdade real, uma vez que o juiz não inquiriu as testemunhas acerca dos fatos, bem como em razão de uma testemunha da acusação ter sido dispensada pelo magistrado singular sem a oitiva do apelante.Ao final, se assim não for o entendimento, pleiteia a condenação do réu.Em contrarrazões, o acusado requer a manutenção da sentença que o absolveu (f.133/136). A Procuradoria-Geral de Justiça questionou a tempestividade da apelação, mas se admitida for e desacolhido o pleito de nulidade, opinou pelo seu provimento para condenar o apelado(f. 144/152).
É o relatório.

À douta revisão.
Goiânia, 04 de setembro de 2009.
DESEMBARGADOR LEANDRO CRISPIM
R E L A T O R

Tribunal de Justiça do Estado de Goiás
Gabinete do Desembargador Leandro Crispim

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 35.622-8/213(200900676420)
COMARCA DE QUIRINÓPOLIS
APELANTE MINISTÉRIO PÚBLICO
APELADO JOSÉ LINHARES DOS SANTOS
RELATOR DESEMBARGADOR LEANDRO CRISPIM

V O T O

Presentes os pressupostos de admissibilidade da apelação, dela conheço.Trata-se de apelação interposta pelo Ministério Público, inconformado com a sentença que julgou improcedente a denúncia e absolveu o acusado José Linhares dos Santos, nos termos do artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal (f. 108/120).O apelante pleiteou a reforma da sentença, no sentido de que o acusado seja condenado nas sanções do artigo 157, caput, § 3º, do Código Penal.

Aduziu que, apesar da ausência do Ministério Público em audiência, cabia ao magistrado singular, em busca da verdade real, inquirir as testemunhas presentes a respeito dos fatos.Sustentou que o princípio da verdade real foi violado, pois o dirigente processual deve buscar provas, tanto quanto as partes. Requereu a nulidade da instrução a partir do interrogatório do acusado, uma vez que o juiz não inquiriu as testemunhas acerca dos fatos, bem como pelo fato de testemunha de acusação ter sido dispensada pelo magistrado singular sem a oitiva do apelante. Ao final, se assim não for o entendimento desta Corte, pleiteou pela condenação do acusado.De início, vejo que os argumentos do Procurador de Justiça a respeito do não conhecimento do presente apelo, em face da sua intempestividade não merece guarida, uma vez que a apelação de f. 121/130 é tempestiva, diante da certidão do escrevente judiciário, responsável pela escrivania, conforme se vê à f. 157.

O apelo foi apresentado em juízo no dia 09/10/2008 (quinta-feira), sendo que o representante do Ministério Público foi intimado da sentença no dia 06/10/2008 (f. 120 verso), e, como o prazo da interposição da apelação é de 05 (cinco) dias, ela se encontra tempestiva. Visto isso, passo, pois, à análise dos argumentos expendidos pelo Ministério Público, ora apelante.Em contrarrazões, o parquet anunciou que “apesar da ausência do Ministério Público em audiência, cabia ao magistrado em busca da verdade real perquirir as testemunhas presentes (...)” (grifei). De fato, é notória a não participação do Órgão Ministerial tanto no interrogatório como na inquirição das testemunhas. Tratando-se do interrogatório, ato nitidamente misto, configurando-se meio de defesa e meio de prova, e oportunizada às partes aparticipação não somente na aferição da regularidade do ato, mas na inquirição acerca do seu objeto material, urge que o Ministério Público esteja presente para desempenhar o papel que a sociedade lhe outorgou pela Constituição Federal.

Por mais que seja ato privativo do juiz, quando este dirigente processual não for exaustivo nas indagações ao acusado, pode, por excelência, o representante Ministerial apontar fatos, colher detalhes, no sentido de contribuir na busca da verdade material e real, corroborando para o melhor deslinde da instrução de forma complementar. Mesmo que se alegue, na prática, que a experiência do magistrado geralmente abrange todos os fatos, ou que não haveria necessidade do Promotor de Justiça comparecer no ato, pois não tinha interesse em fazer nenhuma indagação ao acusado, acrescento que, não só as presenças do defensor e do magistrado são obrigatórias, mas também a do representante ministerial, sob pena de intenso prejuízo procedimental.
A presença do parquet no interrogatório é defendida por célebres autores, veja:
“Até mesmo Paulo Rangel, ao afirmar que "o Ministério Público deve estar presente ao ato, a fim de evitar ofensa aos direitos e garantias individuais, defendendo a ordem jurídica e protegendo o réu das possíveis investidas inquisidoras do juiz, ou exigindo respeito às regras básicas para o desenvolvimento de um processo penal justo". Da mesma forma, Tourinho Filho assim se manifesta: "O Promotor deverá estar presente ao interrogatório, pois o art. 394 dispõe que o Juiz, ao designar data para realização do interrogatório, deverá determinar também a notificação do Ministério Público". (Eitel Santiago de Brito Pereira. Subprocurador-Geral da República. Corregedor-Geral do Ministério Público Federal, in Ofício nº 385/2006-CGMPF de 30/05/2006). Ainda nesse raciocínio, o advento da nova Lei nº 11.719/2008, alterou nosso Diploma Processual Penal, passando o interrogatório a ser realizado sob um contexto de audiência única. Dessa forma, instituiu-se, no procedimento ordinário e sumário, audiência exclusiva, em que se concentram todos dos atos instrutórios. No procedimento antigo, o interrogatório era ato inaugural da instrução criminal, enquanto que, agora, em uma única hipótese, tomar-se-ão as declarações do ofendido, procederá às inquirições testemunhais, esclarecimentos periciais se houver, acareações, reconhecimento de pessoas e, só então, ao final, o magistrado realizará o interrogatório, todos realizados sob a presença do representante ministerial.
Diante desse contexto, Fernando Capez é claro, “O Ministério Público teria mera prerrogativa de fazer-se ou não presente, a fim de formular perguntas complementares; porém, no caso da audiência única, o parquet obrigatoriamente deverá presenciar a realização de todos os atos processuais .” (Curso de Processo Penal. De acordo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás Gabinete do Desembargador Leandro Crispim com as novas leis 11.689, 11.690, 11.719, todas de 2008.2009. p. 355) (grifei).
2- Observando pois, a ausência do Ministério Público, ora apelante, não só no interrogatório, como ausente na audiência de inquirição de testemunhas, e, ainda, fitando a violação do princípio da verdade real pelo magistrado, uma vez que esse não inquiriu as testemunhas acerca dos fatos, tais acontecimentos trouxeram prejuízos ao aclaramento do caso.
Vê-se dos autos que, realmente, o juiz singular não fez nenhuma pergunta às testemunhas Igor de Souza Vieira e Aureliano Gonçalves (f. 95 e 96) e, na sentença proferida, fundamentou com base no artigo 212 do Código de Processo Penal, preceituando que cabe à parte que arrolou a testemunha realizar as indagações e não o dirigente processual. Vejamos o novo artigo 212 do Código de Processo Penal:
“Art. 212 - As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.

Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição. Com efeito, observo que, frente à ausência do parquet nos atos instrutórios, cabia ao magistrado inquirir as testemunhas arroladas ali presentes, tudo pela busca da verdade real, não sendo óbice que tal atitude importaria em violação ao artigo 212 do código processual penal. Se antes o sistema adotado para a inquirição das testemunhas era o presidencialista, no qual as perguntas das partes eram dirigidas ao juiz e, por conseguinte, formuladas à testemunha, com a reforma, o ordenamento jurídico adotou o chamado cross-examination, onde as perguntas são formuladas pelas partes diretamente aos destinatários das indagações.
O intuito explícito do legislador, ao adotar o novo sistema, foi de agilizar a colheita das provas orais e não de tirar do magistrado essa incumbência, pois ainda deve, o dirigente processual apanhar declarações, colher detalhes, esclarecer particularidades, e etc. Como se sabe, no processo penal vigora o princípio da verdade real, em que o julgador forma sua convicção pela livre apreciação da prova,devendo perseguir todos os elementos necessários à instrução do processo, a fim de que possa, tanto quanto possível, descobrir a verdade dos fatos, objetos da ação penal.
Sobre o assunto, mais uma vez, colaciono a intelectualidade de Fernando Capez:
“No processo penal, o juiz tem o dever de investigar como os fatos se passaram na realidade, não se conformando com a verdade formal constante dos autos. [...] Com a nova reforma processual penal passou também a ser possível ao juiz, de ofício, “ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida” (art. 156, I). Tal previsão legal é bastante discutível em face do processo penal acusatório, pois prevê a figura de um juiz investigador, e, portanto, de um processo inquisitivo. Processo inquisitivo é aquele realizado sem as garantias do devido processo penal (contraditório, publicidade, ampla defesa, juiz natural etc), no qual não existe imparcialidade do julgador, nem separação das funções de acusador e juiz, nem vedação das provas ilícitas. O processo acusatório é o que assegura todas as garantias do devido processo legal. Pressupõe a existência de garantias constitucionais decorrentes do respeito à dignidade humana e ajustadas ao perfil de um processo penal democrático, caracterizado pela constante mediação do juiz, principalmente quando houver restrição a algum direito ou garantia fundamental. Foi o modelo adotado no Brasil. [...]. O princípio do ne procedat iudex ex officio preserva o juiz e, ao mesmo tempo, constitui garantia fundamental do acusado, em perfeita sintonia com o processo acusatório. Devido processo legal é aquele em que estão presentes as garantias constitucionais do processo, tais como o contraditório, a ampla defesa, a publicidade, o juiz natural, a imparcialidade do juiz e a inércia juridicional (ne procedat iudex ex officio). (16ª edição, Ed. Saraiva, p. 31/32). (sic) (grifei).
Nesse contexto, encontramo-nos diante de uma circunstância viciada, causada pela ausência do parquet durante a instrução, e ainda a violação do princípio da verdade real pelo magistrado, quando deixou de fazer perguntas às testemunhas para a elucidação dos fatos delituosos, ferindo preceitos constitucionais concernentes aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, por se tratar de ordem pública. A respeito, eis a jurisprudência:
“APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. [...]. 1- No processo penal vigora o princípio da verdade real, em que o julgador forma sua convicção pela livre apreciação da prova, devendo perseguir todos os elementos necessários a instrução do processo, a fim de que possa, tanto quanto possível, descobrir a verdade dos  fatos objetos da ação penal. [...].” (TJGO, Segunda Câmara Criminal, Des. Paulo Teles, AC nº 29.921-3/213, 28/06/2007).
Nessa linha, infere-se que o feito encontra-se dominado por uma nulidade irresgatável, perfazendo-se deficiente a instrução criminal.

Tribunal de Justiça do Estado de Goiás Gabinete do Desembargador Leandro Crispim Dessa forma, impõe-se o chamamento do processo à ordem, a fim de declarar a nulidade do iter procedimental a partir do recebimento da denúncia. Importante ressalvar que o procedimento a ser adotado deverá ser o disposto na Lei nº 11.719/2008, lembrando que a presença do parquet é forçosa e inevitável.
Ante o exposto, acolhendo o parecer Ministerial de Cúpula, conheço da apelação e lhe dou provimento, para declarar a nulidade da instrução criminal a partir do recebimento da denúncia, prosseguindo os atos instrutórios de acordo com os ditames da Lei nº 11.719/2008.
Custas de lei.
É como voto.
Goiânia, 03 de novembro de 2009.
DESEMBARGADOR LEANDRO CRISPIM
R E L A T O R
Tribunal de Justiça do Estado de Goiás
Gabinete do Desembargador Leandro Crispim

APELAÇÃO CRIMINAL Nº35.622-8/213(200900676420)
COMARCA DE QUIRINÓPOLIS.APELANTE MINISTÉRIO PÚBLICO.APELADO JOSÉ LINHARES DOS SANTOS.RELATOR DESEMBARGADOR LEANDRO CRISPIM.EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL.LATROCÍNIO. FALTA DE COMPARECIMENTO DO PARQUET DURANTE A INSTRUÇÃO. O Ministério Público deve estar presente durante a instrução criminal, a fim de evitar ofensa aos direitos e garantias individuais, defendendo a ordem jurídica e exigindo respeito às regras básicas para o desenvolvimento de um processo penal justo. 2- AUSÊNCIA DE PERGUNTAS ÀS TESTEMUNHAS EM AUDIÊNCIA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA VERDADE REAL PELO MAGISTRADO.NULIDADE. Declara-se a nulidade da instrução criminal a partir do recebimento da denúncia adotandose o novo procedimento da Lei nº 11.719/2008, uma vez violado o princípio da verdade real pelo juiz a quo, em razão de não ter inquirido as testemunhas quando da audiência, ferindo preceitos constitucionais concernentes aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
APELAÇÃO CONHECIDA E PROVIDA.NULIDADE DECLARADA.
A C Ó R D Ã O
Vistos, oralmente relatados e discutidos os presentes autos de Apelação Criminal nº 35.622- 8/213 (200900676420), da Comarca de Quirinópolis, figurando como apelante o Ministério Público e como apelado José Linhares dos Santos. ACORDAM os integrantes da Segunda Turma Julgadora da Primeira Câmara Criminal do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, por votação uniforme, desacolhendo o parecer Mnisterial, em conhecer da apelação e lhe dar provimento, para declarar a nulidade da instrução criminal a partir do recebimento da denúncia, nos termos do voto do Relator exarado na assentada do julgamento que a este se incorpora. Sem Custas. Presente à sessão o Doutor AlciomarAguinaldo Leão, ilustre Procurador de Justiça.
Goiânia, 03 de novembro de 2009.
DESEMBARGADOR LEANDRO CRISPIM
R E L A T O R E P R E S I D E N T E

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Resenha do Livro " A opção Terra" de Leonardo Boff. * Por Angela A.G Moura





Por Angela Acosta Giovanini de Moura

Autor de mais de setenta livros em diversas áreas do conhecimento, Leonardo Boff, um dos idealizadores da teoria da libertação, é doutor em Teologia e Filosofia pela Universidade de Munique, Alemanha. Defensor ardoroso dos Direitos Humanos recebeu títulos de Doutor Honoris Causa, em Política, pela Universidade de Turim, Itália, e Teologia, pela Universidade de Lund, Suécia. Foi, também, agraciado com Prêmio Nobel Alternativo, em Estocolmo, em razão de sua militância para articular justiça social com justiça ecológica.

Leonardo Boff, referindo-se à Terra como Gaia, designação filosófica e científica que visualiza o planeta como um organismo vivo, propõe nesta obra a mudança do comportamento humano diante da natureza, como saída para as tragédias anunciadas pela ciência. Nas primeiras páginas do livro, o autor faz uma biografia da Terra. Reporta-se à teoria do big bang, como marco inicial do universo e todos os elementos químicos indispensáveis ao aparecimento da vida no planeta. Com um olhar evolucionista sobre a origem da espécie humana, descreve o processo de hominização, partindo dos primatas, cuja linhagem se bifurcou, em razão de um acidente geológico ocorrido há mais de sete milhões de anos, para dar sequência a duas ramificações, os primatas e a espécie humana.
A espécie humana logo ocupou 83% da superfície do Planeta, ameaçando seu equilíbrio e todas as demais espécies vivas. Sua caminhada pelo mundo foi marcada pela destruição, colocando em risco sua própria existência no universo. Compete-lhe, agora, nesta era de globalização excludente, o desafio de encontrar um novo paradigma de produção e consumo, para continuar existindo (p.37).
Numa abordagem holística do homem e do mundo, o autor reflete sobre a ordem e harmonia perfeita regulando as forças e os elementos que sustentam o planeta, para concluir que existe uma inteligência ordenadora, comandando toda a sinfonia planetária, extremamente sábia e superior à nossa.
A existência de um campo unificado onde interagem as quatro forças primordiais (gravitacional, eletromagnética, nuclear forte e fraca) e a descoberta do campo filogenético unificado, reforçam a tese de que o universo é constituído por uma imensa teia de relações, onde todos os seres vivos se interagem, impondo-se a conservação da natureza como condição indispensável para o homem permanecer no planeta (p.59).
A ameaça de extinção da espécie humana levou as autoridades mundiais ao discurso do desenvolvimento sustentável, norteando projetos econômicos e ambientais. Para Boff, a desigualdade social e a falta de equidade mundial, gerando riquezas de um lado e pobreza extrema de outro, desmerece a política do desenvolvimento sustentável nos moldes em que, atualmente, é conduzida. O modo capitalista de produção gerou o consumismo desenfreado, culminando com o aumento da pobreza, aquecimento global e ameaça à biodiversidade.
Para o autor, a ecologia, as descobertas da física quântica e da cosmologia, acenam de forma otimista ao quadro ambiental planetário, podendo apresentar respostas para as três grandes preocupações que afligem a humanidade: escassez de recursos naturais, mudanças climáticas e aquecimento global.
Boff assinala que a ética da sociedade dominante é utilitarista e antropocêntrica, mas as expressões da ecologia podem provocar a necessária mudança na forma do homem se relacionar com o meio ambiente. A opção pela Terra exige do homem a superação do paradigma civilizacional vigente, responsável pela pobreza de dois terços da humanidade, e pela exaustação do planeta, ante a volúpia da utilização de seus recursos.
Seguidor da teoria de que o universo não é linear, mas complexo, cujos fenômenos são de natureza quântica, regidos pelo princípio da indeterminação, incerteza e probabilidade, o autor pauta suas ideias na ética da compaixão pelo planeta, como tentativa de evitar que as ameaças ao mundo terminem em tragédias. A Carta da Terra foi escrita com este espírito e embora não trouxesse em sua origem a preocupação ecológica, foi com este propósito que foi reeditada em várias reuniões internacionais organizadas pela Organização das Nações Unidas. Reunindo um conjunto de visões, valores e princípios, apresenta pontos referenciais do modo sustentável de vida, podendo despertar na humanidade o reencantamento pelo planeta.
A opção Terra aponta um novo caminho e direção que podem auxiliar o homem a desenvolver um sentimento de amor à Terra. Sugerindo mudanças de atitudes diante do universo e da natureza, o autor destaca a necessidade de se elevar o padrão mental humano para abrigar o respeito à biodiversidade, às diferenças culturais, aos saberes cotidianos e o amor ao próximo. O hábito consumista deve dar lugar à simplicidade, buscando-se apenas o necessário para se viver bem. Na vida diária a democracia se destaca como a melhor forma de relação e solução de conflitos, devendo ser vivida na família, na comunidade, nas relações sociais e na organização do Estado. Estabelece que a mudança nas relações para com o meio ambiente, importa denunciar todas as agressões à natureza, devendo a humanidade aceitar um comportamento de consumo sem desperdício e sem agressão ao planeta.
Por fim, o autor encerra sua obra com um cântico emocionante de louvor, gratidão e amor à Gaia, Planeta Terra, berço esplendoroso que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.
De leitura envolvente e estimulante, as ideias do autor são permeadas de informações científicas, filosóficas e holísticas, de fácil compreensão, sendo recomendado ao público em geral. Trata-se de uma obra que contribui para a formação de uma nova ética planetária, como forma de serem enfrentadas as ameaças ao planeta, as quais devem ser encaradas como oportunidade de um novo salto rumo ao estágio superior da história humana.

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Resenha do Livro A opção Terra, de Leonardo Boff está licenciado sob uma licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-No Derivative Works 3.0 Brasil.