quinta-feira, 10 de junho de 2010

Proibição das pulseirinhas do mal

Damásio Evangelista de Jesus Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo - Aposentado. Doutor "Honoris Causa" em Direito pela Universidade de Estudos de Salermo - Itália. Presidente e Professor do Compléxo Jurídico Damásio de Jesus. Autor de diversas obras pela Editora Saraiva. 

Valho-me do velho aforismo jurídico para responder às medidas, anunciadas pelos meios de comunicação, proibindo o uso e venda, para menores de 18 anos, das chamadas "pulseiras do sexo". Transformadas em sinais sexuais conforme as cores, quando arrebentadas por um conhecido ou estranho (to snap away), dá-lhe o direito, como se fosse um jogo, de receber uma recompensa, que pode ser desde o simples beijo até o momento consumativo da saciedade libidinosa. Suspeitas de serem a causa de estupros de jovens que as usavam, viraram caso de polícia.

De acordo com as notícias, Rio de Janeiro, Manaus, Campo Grande, Sertãozinho, Florianópolis e Maringá proibiram o acessório, sendo as ordens determinadas pelos Juizados da Infância e da Juventude, Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais. No caso de seu descumprimento por escolas públicas e particulares, às quais se confere a obrigação de observância e vigilância, são previstas multa e cassação de alvarás de funcionamento. É verdade: ameaçam fechar as escolas desobedientes.

Às pulseiras de silicone conferiu-se, pelo visto, uma ambígua função erótica. Atraem por ser um adereço simples, barato, colorido e descartável e, ao mesmo tempo, oferece um produto segundo um código perverso. Nem sempre braços inocentes de nossas crianças e adolescentes ostentam o adorno com o pleno conhecimento sobre o novo significado que a loucura humana lhe atribuiu.

Proibir o uso das pulseiras não anula a presença de uma patologia social que, fatalmente, se manifestará de outra forma: de pulso para pescoço; de pulseira para brinco.

O abuso sexual, ao lado de outros tantos, é  a ponta de um dos muitos icebergs que se enroscam nos alicerces de nossas instituições, bem lá no fundo, neste mar encapelado que é a sociedade. Como ocorre no Direito Penal, pretende-se, com uma nova lei incriminadora, reduzir a prática delituosa, esquecendo-se de combater a verdadeira fonte do mal.

Não há pessimismo em minhas observações, mas, quando a Polícia e o Ministério Público são instados a interferir em determinado fenômeno social, é sinal de que as partes já  esgotaram sua capacidade de conciliação: a agressão física ou moral à pessoa já se configurou. Há uma situação de fato.

Proibir a causa imediata de algo que consideramos errado nos põe a pensar. Estariam as jovens, portando as pulseiras, provocando os homens à prática sexual, sendo, por isso, responsáveis pelas ocorrências? Creio que não. Estão desprezando, nesse contexto, da questão de coibir o arrebatamento do adorno, na maioria esmagadora praticado pelo homem. Pensam da seguinte forma: se a jovem não usar pulseira, não haverá ataque. Logo, proíba-se o uso. Então, elas são culpadas pelo fato? Quer dizer que não têm capacidade de reger o próprio corpo? Engano. Melhor do que a proibição é a educação, o que algumas escolar estão fazendo por intermédio de panfletos, palestras etc.

Matutando sobre o assunto, como dizia meu pai, lembrei que nos tempos de enchente, ao represar a água, sabemos que está contida e temos o domínio técnico sobre ela. E, empregando esse controle de modo a canalizá-la para aquilo que é o desejável, ela continua lá, com toda a sua força pressionando a barragem que a contém. No caso das bijuterias coloridas, proibindo o uso porque existe abuso é imaginar que, como o represamento da água, iremos estagnar o fenômeno. Essa medida, contudo, não vai alterar a conduta sexual dos nossos menores.

Na cidade de São Paulo, os homicídios, só no primeiro trimestre deste ano, cresceram 12% em relação ao mesmo período de 2009, conforme informa a Secretaria de Segurança Pública. Ora, se começarem a praticar venefícios (homicídios por envenenamento), proibiremos a venda de venenos? No trânsito, estamos matando cerca de 35 mil pessoas por ano. Seria, então, caso de proibirmos a fabricação de automóveis? O caminho, por certo, não é esse.

Nossas crianças e jovens estão na linha de frente: são os alvos prediletos de anormais de toda espécie: traficantes de drogas, internautas bandidos e personalidades doentias, muitas vezes com o dever de garantir-lhes segurança e proteção,. Por que as crianças e jovens? Porque acreditam serem os mais vulneráveis, e o são. E, por que o são? Faltam-lhes, na maior parte dos casos, saúde física e mental, educação informal e formal. Aprendem, desde cedo, um falso conceito de sabedoria: sabido é o esperto; esperto, o que se dá bem. E "dar-se bem" nem sempre é sinônimo de viver honestamente. É nesse tecido social desfiado que crescem nossas crianças.

Está proibido o uso? Muito bem, então não mais se usa pulseira, minissaia, calçados e cintos coloridos, lenços nos bolsos, colar, distintivo, unhas pintadas de cores diferentes, cabelos coloridos, lenço de cabelo, decote, anel, brinco, biquíni, broche, boné, peruca colorida, laço no pescoço. Mas, e daí? Proibir o uso resolve alguma coisa? Só vamos mudar endereço corporal do adereço: pescoço, pés, tornozelos, orelhas. E o próprio adereço: boné, brinco etc.

Continuo considerando urgente uma revisão de valores, uma atualização de conceitos, uma educação verdadeiramente redentora para efetivamente dar a cada um a capacidade e o direito de saber o que fazer e o que não fazer com o próprio corpo.

Artigo copiado do site : http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=5557

STJ erra e incrementa a Violência de Gênero


 Luiz Flávio Gomes Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

No dia 24.02.10 a Terceira Seção do STJ (Quinta e Sexta Turmas) concluiu ser indispensável a manifestação da vontade da vítima para a propositura da ação penal (que seria pública condicionada) no caso de lesão corporal leve praticada contra mulher, no âmbito familiar ou doméstico ou de relacionamento íntimo. Desde a edição da Lei 11.340/2006 (lei Maria da Penha) reina muita controvérsia sobre esse ponto, tendo em vista o conflito legislativo estabelecido entre o art. 41 (da referida lei), que dispensa a representação da vítima, e o art. 16 (da mesma lei), que proclama a necessidade dessa representação.
Em se tratando de violência de gênero, não há dúvida que a norma mais favorável (princípio pro homine) é a que não exige nenhum tipo de manifestação de vontade da vítima (art. 41), porque quem está subjugado (culturalmente) não tem liberdade de atuação.
O equívoco do STJ (com a devida venia) consistiu em tentar solucionar a questão jurídica pendente só de acordo com os parâmetros legalistas (esquecendo-se das demais fontes do direito: constitucionalista, internacionalista e universalista). Parece, ademais, não ter entendido o conceito de violência de gênero, a questão do bem jurídico (suprandividual) e a posição frágil da mulher nesse contexto de violência machista.
A lei Maria da Penha, com todas as suas medidas protetivas, parte da premissa de que existe desigualdade (na violência de gênero) entre o homem e a mulher. Exigir da pessoa subjugada (culturalmente) a manifestação da sua vontade para que possa o Estado atuar na esfera criminal (exigência de representação) é uma contradição inominável. Primeiro a lei diz que uma das partes (na violência de gênero) está inferiorizada (a mulher). Depois a jurisprudência exige dessa parte inferiorizada uma manifestação de vontade livre. Como? A contradição é mais do que patente!
Faltou ao STJ uma visão de conjunto. O grave problema de quem só vê algumas árvores é que  não consegue enxergar a floresta. Só no dia em que a mulher já não mais estiver inserida nesse contexto relacional (e cultural) hierarquizado é que se poderá falar em manifestação livre da sua vontade. Por ora, essa não é a realidade (nem o padrão) cultural do nosso país. O STJ, ao concluir (majoritariamente) pela exigência da representação da vítima não reconheceu a realidade cultural brasileira nem percebeu a imperiosa necessidade (na atualidade) da conjugação de todas as fontes do direito. Ignorou-se o que Miguel Reale chamava de referenciabilidade social da lei.
Pesquisa da ONG Promundo, com homens jovens da Maré, no Rio, mostrou que 35% acham "justificável" bater em mulher quando ela se veste ou se comporta de maneira provocante (O Globo de 30.03.09, p. 10).  Mais: 10% acham que é legítimo o uso de violência psicológica contra a mulher e 15% admitiram que bateram em "sua" mulher nos últimos seis meses. Essa crença popular (machista) de que o homem pode bater na ("sua") mulher constitui um exemplo que bem expressa a violência de gênero (que é, repita-se, cultural).
A cada dezoito segundos uma mulher é agredida no planeta (dados da ONU, segundo Xavier Torres, no prefácio do livro Maltrato, um permiso milenario, de Ana Kipen e Mônica Caterberg, Barcelona: Internón Oxfam, 2006, p. 23). No Brasil temos um espancamento contra a mulher em cada quinze segundos (pesquisa levantada por Alice Bianchini junto à Fundação Perseu Abramo). Isso explica porque a preocupação número um das mulheres no Brasil continua sendo a violência doméstica (56%, conforme Pesquisa feita com duas mil pessoas em todas as regiões do país, entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 2009 - Ibope e Instituto Avon).
A lei partiu de uma premissa: há desigualdade (fática) entre o homem e a mulher (daí a necessidade de proteção). Isso feriria a isonomia? Não. O princípio da igualdade é não somente formal, senão sobretudo material. Cabe à lei tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente. Em matéria de violência de gênero a mulher é desigual em relação ao homem (ela é vista de forma inferiorizada, hierarquizada). Logo, deve ser tratada de maneira diferente. Não existe uma discriminação odiosa, não justificada, em favor da mulher. Ao contrário, é com as medidas protetivas da lei que se busca o equilíbro.
O STJ, não tendo entendido bem o conceito (violência de gênero) tampouco conseguiu vislumbrar o bem jurídico protegido, que é supraindividual (a lei procurou regrar imediatamente não a integridade física da mulher, sim a eliminação da sua submissão; o bem jurídico protegido na violência de gênero diz respeito à eliminação de uma desigualdade que é patente em sociedades com padrões sócio-culturais machistas e discriminatórios). Cuidando-se de um bem jurídico supraindividual, não há que se falar em representação da vítima (ou de uma vítima, que não tem legitimidade para falar em nome do todo).
A conclusão do STJ, de outro lado, desconsiderou (completamente) o direito internacional (embora seja ele hoje uma das legítimas fontes do direito). Já no preâmbulo da Lei Maria da Penha foi feita menção a dois importantes documentos internacionais que tratam do tema ligado à violência contra a mulher: (1) Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher - CEDAW, ratificada pelo Brasil em 1984 e (2) a Convenção de Belém do Pará, ratificada no ano de 1995.
Ao ratificar a Convenção de Belém do Pará, o Brasil comprometeu-se a "incluir em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas, assim como as de outra natureza que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher e adotar as medidas administrativas apropriadas que venham ao caso" (art. 7.º, c).
A decisão do STJ (Terceira Seção, por maioria) contrariou (flagrantemente) o disposto no art. 2º, "c", da mesma Convenção, que diz: [Os Estados-partes se comprometem a (...)] "estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher em uma base de igualdade com os homens e garantir, por meio dos tribunais nacionais competentes e de outras instituições públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de discriminação".
Tudo que a decisão da Terceira Seção não fez foi atender o preceito (internacional) ora transcrito. A proteção jurídica (efetiva) da mulher, dentro do contexto da violência de gênero, conduz a conclusão totalmente oposta à adotada pelo STJ. Como esperar proteção jurídica da mulher (dentro de um contexto relacional inferiorizado, subjugado) se referido tribunal quer que ela "se rebele" (por conta e risco próprios) contra seu agressor?
O STJ certamente estava pensando numa mulher "hércules", porém, não é isso que existe na realidade. Fechou os olhos para os fatos, continuou preso às amarras legalistas tradicionais e, dessa forma, não só se distanciou do direito internacional, como está contribuindo para a reprodução da violência machista (que primeiro vitimiza a mulher por razões culturais, depois a vitimiza para não ser processado criminalmente assim como para assegurar a perpetuidade da sua "superioridade" machista).
O Estado brasileiro (ou seja: todas as suas autoridades) possui a obrigação internacional de atuar em conformidade com o direito respectivo. Um dos seus deveres consiste em "abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação contra a mulher" (art. 2º, "d", da Convenção citada). A interpretação do STJ (Terceira Seção), na medida em que favorece a violência de gênero, está incorrendo numa lamentável prática de incremento de discriminação contra a mulher (exigindo dela uma hercúlea tarefa típica do machismo, que no contexto em que ela está submetida só é inerente à outra parte, a agressora).
Se de um lado parece muito acertado afirmar que a mulher não tem nada a ver com a visão culturalmente deturpada do sexo frágil, de outro, tampouco parece ajustado pretender que ela se comporte como "hércules" (enfrentando todas as marés e adversidades possíveis). Da mulher discriminada, subjugada, corroída em sua independência e liberdade, não se pode esperar atos heróicos ou épicos (ou de coragem sobrenatural, como disse o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho).  

link da publicação do artigo://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=5561